Há histórias diplomáticas que se contam por gestos oficiais, outras por discursos de ocasião, e há aquelas que se revelam, com mais precisão, nos fluxos de mercadorias e nos números da balança comercial. Entre Brasil e Áustria, os últimos trinta anos se contam assim: um corredor silencioso de café, minérios, celulose, aço e máquinas cruzando oceanos, moldando a indústria austríaca e sustentando a sua competitividade.

Ao longo desse período, a Áustria não foi um parceiro periférico. Embora seu mercado seja pequeno no mapa global, seu apetite por recursos e insumos brasileiros manteve-se constante, ajustando-se às necessidades de cada década. Nos anos 1990, a pauta era simples: commodities agrícolas e minerais, com o café reinando absoluto, seguido de minérios e derivados. Entre 1993 e 1999, os valores anuais oscilaram de 52 a 96 milhões de dólares, quantias modestas, mas significativas para o estágio da relação.

O salto veio no início dos anos 2000. Em 2000, três aeronaves Embraer ERJ 145, avaliadas em 44 milhões de dólares, decolaram rumo a Viena, levando consigo não só passageiros no futuro, mas também um novo patamar para o comércio bilateral. Quatro anos depois, o recorde de 290 milhões de dólares em exportações brasileiras consolidou a ideia de que a relação não se limitaria a café e minério. Máquinas, equipamentos industriais, papel e celulose passaram a compor o portfólio.
Na década seguinte, os dados são mais escassos, mas reveladores. Em 2019, antes do choque global da pandemia, o Brasil exportou 405 milhões de dólares para a Áustria, possivelmente um recorde histórico. Era o retrato de uma pauta já industrializada, com produtos de maior valor agregado, como aparelhos ópticos e médicos, somando-se aos tradicionais insumos florestais e metalúrgicos.
No entanto, os últimos anos trouxeram retração. Em 2023, as exportações caíram para 96,3 milhões de dólares; em 2024, recuaram para 80,28 milhões. O comércio bilateral, porém, continua desigual: as importações brasileiras de produtos austríacos chegaram a 1,3 bilhão de dólares em 2023, gerando um déficit de 1,2 bilhão para o Brasil.
O que viajou nesses navios e aviões
A história dessa relação é também a história do que exportamos. Em 2024, a lista era liderada por máquinas e reatores nucleares (19,33 milhões de dólares), seguida por polpa de madeira e material celulósico fibroso (16,03 milhões), equipamentos elétricos e eletrônicos (9,34 milhões), aparelhos ópticos e médicos (4,64 milhões), ferro e aço (4,46 milhões) e artigos de papel (4,33 milhões). Somados, esses produtos representaram 75,5% de tudo o que o Brasil vendeu para a Áustria naquele ano.
O perfil mudou muito desde os anos 1990, quando o café respondia por mais de um terço das exportações e os minérios ocupavam o segundo lugar. Ao longo do tempo, o Brasil deixou de ser apenas fornecedor de commodities para se tornar também um parceiro industrial e tecnológico — ainda que, no equilíbrio de forças, continue mais como provedor de insumos do que como vendedor de produtos acabados com marca própria.
A COP 30 e a recusa austríaca
Diante desse histórico, a decisão da Áustria de não participar da COP 30, marcada para novembro de 2025 em Belém, no Pará, soou no mínimo contraditória. O argumento oficial? Os custos de hospedagem seriam elevados.
A justificativa, ainda que pragmática do ponto de vista orçamentário, destoa de todo o discurso europeu de comprometimento ambiental. A COP 30 não é apenas mais uma conferência; é um encontro simbólico, realizado no coração da Amazônia, em um estado que carrega tanto o peso de ser guardião de uma das maiores reservas de biodiversidade do planeta quanto o estigma de ser palco de conflitos fundiários e pressões do agronegócio.
Para um país que, durante décadas, importou madeira processada, celulose, minérios e outros recursos brasileiros, todos dependentes, direta ou indiretamente, de ecossistemas amazônicos e de políticas ambientais consistentes, a ausência parece mais do que uma questão logística: é um recado sobre prioridades.

O paradoxo europeu
A União Europeia, da qual a Áustria é membro, tem se posicionado como protagonista no debate climático global. O Pacto Ecológico Europeu (European Green Deal) e as metas de neutralidade de carbono até 2050 são apresentados como prova de compromisso. Mas a coerência desse discurso é testada quando se exige presença em lugares e momentos onde as decisões precisam ser negociadas frente a frente com países detentores de recursos estratégicos.
Recusar-se a ir à COP 30 por “alto custo” soa como dizer que o problema climático é urgente, desde que as reuniões ocorram em hotéis confortáveis de cidades com voos diretos para Viena. É um paradoxo difícil de explicar a um público que espera consistência entre as promessas ambientais e as práticas diplomáticas.
Sustentabilidade e memória curta
Ao longo desses trinta anos, o que saiu dos portos e aeroportos brasileiros rumo à Áustria não foi apenas mercadoria. Foi tempo de trabalho, energia, impacto ambiental. Cada tonelada de celulose exportada carrega hectares de eucalipto plantado, cada barra de aço leva consigo a extração de minério de ferro e o consumo de energia, cada peça de máquina incorpora cadeias de produção que começam no Brasil profundo.
Quando um país se beneficia continuamente desses fluxos, há uma expectativa implícita de que, nos fóruns que definem o futuro desses recursos, ele esteja presente. Não é caridade; é corresponsabilidade.
Oportunidades perdidas e recados implícitos
Para o Brasil, a ausência austríaca é mais do que uma cadeira vazia. É uma oportunidade perdida de dialogar sobre comércio, investimento e sustentabilidade em um espaço multilateral onde interesses podem ser negociados em bloco. Também é um sinal de que, para certos parceiros, a prioridade econômica supera a prioridade ambiental, algo que deve ser considerado em futuras negociações comerciais e políticas.
A recusa lança luz sobre um ponto sensível: a dependência brasileira de poucos mercados para determinados produtos. Em 2024, quase um quinto das exportações para a Áustria foi de máquinas e reatores nucleares, itens que não se encaixam na imagem tradicional de “exportação de país emergente”, mas que ainda refletem uma posição subordinada na cadeia global de valor. Essa concentração limita a margem de manobra do Brasil quando um parceiro decide recuar em questões políticas ou diplomáticas.
Um recado que volta para casa
Ao mesmo tempo, a decisão austríaca serve de alerta para o próprio Brasil: a retórica de “potência ambiental” precisa ser sustentada por políticas coerentes e por uma diplomacia que saiba cobrar presença e comprometimento de parceiros estratégicos. A COP 30, em Belém, será uma vitrine para mostrar que desenvolvimento e preservação podem andar juntos, mas também um teste para medir quem está realmente disposto a assumir responsabilidades globais.
A pergunta que fica
Se durante trinta anos foi possível construir e manter um fluxo constante de comércio, com investimentos diretos e presença empresarial austríaca em solo brasileiro, por que a mesma disposição não se aplica a um evento que discute justamente como preservar o meio ambiente que fornece esses recursos?
A resposta, talvez, não esteja no custo da hospedagem em Belém, mas no custo político de se expor em um cenário onde interesses econômicos e ambientais colidem. E é aí que se revela a verdadeira distância entre Viena e a Amazônia, não a geográfica, mas a das prioridades.







































