Em pleno coração da Amazônia, no Parque Nacional da Amazônia, pesquisadores identificaram uma bactéria até então desconhecida. O achado pode parecer apenas mais um entre tantos registros da rica biodiversidade da floresta, mas ganha importância pelo fato de pertencer ao gênero Bartonella — o mesmo responsável por doenças negligenciadas que afetam populações humanas em países vizinhos.

A descoberta foi feita em flebotomíneos, popularmente conhecidos como mosquitos-palha, coletados no Pará entre 2022 e 2023. Esses insetos são tradicionalmente lembrados pela transmissão da leishmaniose, mas agora entraram no radar de outro possível agente infeccioso. O DNA encontrado guarda semelhança com duas espécies andinas já conhecidas por sua ação patogênica: Bartonella bacilliformis e Bartonella ancashensis, responsáveis pela chamada doença de Carrión, que inclui manifestações como a febre de Oroya e a verruga peruana.
O estudo foi conduzido por Marcos Rogério André, da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em colaboração com Eunice Aparecida Bianchi Galati, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). A pesquisa recebeu apoio da FAPESP e foi publicada na revista científica Acta Tropica.
Apesar da proximidade genética com bactérias andinas, ainda não há evidências de que a nova linhagem encontrada no Brasil cause enfermidades. Mas, como alertam os cientistas, o simples fato de integrar um gênero com histórico de doenças graves justifica um acompanhamento contínuo. “Estamos detectando uma linhagem inédita, próxima de espécies que já sabemos ser patogênicas. O desafio é entender se ela pode desencadear algum quadro clínico distinto”, explica André.
O que é a bartonelose
O termo “bartonelose” reúne um conjunto de doenças causadas por bactérias do gênero Bartonella. Sua transmissão ocorre por diferentes vetores, incluindo mosquitos-palha, piolhos e pulgas. O problema é que, muitas vezes, as infecções passam despercebidas, permanecendo por longo tempo no organismo e afetando sobretudo pessoas com imunidade comprometida.
A forma mais conhecida da enfermidade é a “doença da arranhadura do gato”, associada à espécie Bartonella henselae. No entanto, em regiões andinas, a doença de Carrión representa um desafio histórico de saúde pública, marcada por febres persistentes e lesões cutâneas debilitantes.
Por se tratar de um grupo de enfermidades negligenciadas, com pouca visibilidade internacional, a detecção de linhagens próximas na Amazônia acende um alerta. Em áreas isoladas e com baixo acesso a serviços de saúde, como muitas comunidades da floresta, um eventual surto poderia se tornar invisível por muito tempo.

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O trabalho de campo e as hipóteses
O esforço de coleta que permitiu a descoberta foi meticuloso. Durante um ano inteiro, os pesquisadores capturaram mensalmente fêmeas de flebotomíneos ao longo de trilhas próximas aos rios Uruá e Tracoá, dentro do parque. No total, foram analisados 297 insetos.
O resultado traz implicações que vão além da mera curiosidade científica. Espécies de mosquitos-palha muito próximas às encontradas no Brasil já foram confirmadas como vetores de Bartonella bacilliformis no Peru. Isso significa que a possibilidade de adaptação desses microrganismos a novos hospedeiros e territórios não é apenas uma especulação distante.
Segundo Galati, entender quais animais servem de reservatórios naturais também será essencial. Esse é o próximo passo de um projeto que inclui análises não só na Amazônia, mas também em regiões como a Mata Atlântica, onde ela mantém um acervo de espécimes coletados com apoio da FAPESP.
A pesquisa abre um campo de investigação ainda em estágio inicial. Até o momento, não há registros clínicos no Brasil associados à nova linhagem de Bartonella. Mas os cientistas chamam a atenção para casos de febres recorrentes e sem diagnóstico claro, comuns em áreas rurais. “Será que parte desses pacientes não estaria infectada com uma espécie ainda não descrita?”, provoca André.
O achado não deve gerar pânico, mas funciona como um lembrete da complexa interação entre biodiversidade e saúde. Num cenário de mudanças ambientais e intensificação da circulação humana em áreas remotas, agentes infecciosos antes restritos a certos ecossistemas podem ganhar espaço em novos territórios.
Monitorar, investigar e integrar diferentes áreas do conhecimento — da entomologia à medicina — será crucial para antecipar riscos. Afinal, a floresta ainda guarda microrganismos capazes de revelar muito sobre a saúde das populações humanas que nela vivem ou que dela se aproximam.













































