A floresta amazônica, mesmo em regiões consideradas praticamente intocadas, está deixando de ser um refúgio seguro para as aves que habitam seus sub-bosques.
Aquecimento invisível, impacto fatal
Um estudo publicado na revista Science Advances revela que um aumento de apenas 1ºC na temperatura média da estação seca já é suficiente para provocar uma queda de 63% na taxa de sobrevivência dessas aves.
A pesquisa, conduzida entre 1985 e 2012, analisou mais de 4 mil aves de 29 espécies diferentes, marcadas e recapturadas ao longo dos anos dentro de 3.180 hectares de floresta preservada do Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais (PDBFF), próximo a Manaus (AM).
“Estamos falando de áreas sem interferência humana direta, o que mostra que o clima, sozinho, já está alterando drasticamente a vida silvestre”, explica o ornitólogo Jared Wolfe, da Universidade Tecnológica de Michigan e pesquisador associado ao Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
Temperatura: a variável mais letal
Segundo o estudo, a elevação da temperatura é hoje o principal fator de risco para essas aves. Das 29 espécies analisadas, 24 apresentaram redução significativa na sobrevivência durante períodos mais quentes. A pesquisa mostra que, em média, quando a estação seca fica mais quente, a chance de um pássaro sobreviver ao ano seguinte cai para um terço do que seria em condições normais.
O modelo estatístico utilizado revelou que 85% da variação nas taxas de sobrevivência podem ser explicadas pela temperatura. Já a redução de 10 mm na quantidade de chuva durante o mesmo período apresentou um impacto consideravelmente menor: queda de apenas 14% na taxa de sobrevivência.
Espécies mais afetadas: alerta vermelho
Entre as aves mais vulneráveis estão espécies que vivem por mais tempo e dependem da vegetação baixa e úmida da floresta, como o barranqueiro-pardo (Automolus infuscatus), o arapaçu-de-garganta-pintada (Certhiasomus stictolaemus), o bico-virado-miúdo (Xenops minutus) e o mãe-de-taoca-de-garganta-vermelha (Gymnopithys rufigula).
Essas aves são particularmente sensíveis às variações térmicas porque dependem de microclimas estáveis para caçar, se esconder e nidificar. “As temperaturas elevadas e a seca podem desestabilizar completamente esse ambiente”, destaca Wolfe.
Sobrevivência aparente: o que os dados revelam
O estudo se baseia em um conceito chamado “sobrevivência aparente”, que avalia a permanência dos indivíduos identificados em uma área ao longo do tempo. Uma queda nessa taxa não significa necessariamente que os animais morreram — eles podem ter migrado ou não ter sido recapturados. No entanto, a ausência recorrente desses indivíduos ano após ano aponta para a mortalidade como causa mais provável.
“Os modelos estatísticos nos ajudaram a isolar o efeito real da temperatura. O padrão é claro: quanto mais quente, menor a chance de sobrevivência”, afirma o biólogo Philip Stouffer, coautor do estudo.
A floresta como abrigo: microclimas em risco
Apesar das conclusões preocupantes, os pesquisadores apontam que ainda existem estratégias naturais que podem ser exploradas para a conservação das aves. Áreas mais baixas da floresta, próximas a corpos d’água e com vegetação densa, tendem a manter temperaturas mais amenas, funcionando como refúgios térmicos para as espécies mais sensíveis.
Entretanto, a continuidade desses microclimas depende da preservação de grandes trechos de floresta intacta. “Quanto mais fragmentada a floresta, menor a capacidade de criar esses bolsões de sobrevivência”, explica Stouffer.
Mudanças climáticas e conservação: um alerta urgente
O estudo reforça que as mudanças climáticas, mesmo sem a ação direta do desmatamento, já estão afetando significativamente a biodiversidade amazônica. “Precisamos parar de desmatar e investir em restauração florestal. Só assim conseguiremos restabelecer o equilíbrio climático”, alerta o ornitólogo Mario Cohn-Haft, curador de aves do Inpa.
A pesquisa também destaca a necessidade de estudos genéticos que identifiquem possíveis mecanismos de adaptação nas espécies mais ameaçadas. “Será que algumas aves têm genes que as tornam mais resistentes ao calor? Essa pode ser uma chave para a conservação no futuro”, sugere a bióloga Ana Paula Assis, da USP.
O que está por vir: um futuro incerto para a avifauna amazônica
O caso da Amazônia não é isolado. Pesquisas semelhantes no Panamá e no Equador revelam padrões semelhantes de declínio populacional entre aves que habitam camadas inferiores das florestas. A escassez de dados de longo prazo torna esse tipo de estudo ainda mais valioso, mas também evidencia o quanto há para se descobrir e preservar.
Enquanto os impactos das mudanças climáticas se intensificam, a sobrevivência das aves amazônicas depende da urgência com que a sociedade age para conter o aquecimento global e proteger seus habitats naturais.
Fonte: Pesquisa FAPESP
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