O estado do Amazonas atravessa um dos momentos mais desafiadores de sua história recente. Uma cheia de proporções alarmantes tem impactado drasticamente a vida de mais de meio milhão de pessoas em diversas regiões.

Nível crítico dos rios provoca impactos severos em dezenas de municípios
Com 40 dos 62 municípios amazonenses oficialmente em situação de emergência e outros 18 em estado de alerta, o cenário é de devastação para milhares de famílias que enfrentam inundações, perdas materiais e prejuízos econômicos consideráveis. Em Manaus, o Rio Negro atingiu a marca de 29,02 metros, índice classificado como crítico pelas autoridades.

A elevação acelerada das águas inundou bairros inteiros, obrigando milhares de moradores a deixarem suas casas. As escolas interromperam as aulas presenciais, substituindo temporariamente o ensino tradicional por atividades remotas, enquanto áreas agrícolas sofreram prejuízos severos, com plantações inteiramente destruídas pela água.
Ainda que a cheia de 2025 não tenha superado o recorde histórico de 30,02 metros registrado em 2021, sua rapidez e intensidade preocupam autoridades e especialistas. A situação evidencia uma transformação inquietante no ciclo hidrológico amazônico, que parece estar cada vez mais influenciado pelos efeitos das mudanças climáticas globais.
Chuvas intensas após seca extrema elevaram os níveis dos rios em tempo recorde
O secretário de Defesa Civil do Amazonas, coronel Francisco Máximo, explicou que o fenômeno atual está diretamente ligado à intensificação das chuvas na região Norte, após uma das piores estiagens já registradas no fim de 2024. Naquele período, o Rio Negro atingiu apenas 12,11 metros em Manaus, o que evidencia a severidade do contraste vivido entre dois extremos hidrológicos num intervalo de poucos meses.
Essa mudança abrupta expõe a fragilidade do regime de chuvas na região amazônica, que tradicionalmente obedecia a ciclos relativamente previsíveis. Agora, com a interferência da chamada zona de convergência intertropical, uma faixa de instabilidade atmosférica localizada próximo à linha do Equador, esses ciclos estão se tornando mais voláteis. De acordo com nota técnica do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), a atuação dessa zona de convergência provocou uma intensificação significativa das chuvas entre maio e junho deste ano.
Somente em junho, Manaus registrou 236,9 milímetros de precipitação, um índice 102% superior à média histórica para o mês. E o período de chuvas, que normalmente daria sinais de recuo no início de julho, ainda persiste. No último sábado (5), o Inmet voltou a alertar para a possibilidade de pancadas moderadas e até fortes na capital e em cidades do interior.

Uma tragédia silenciosa: a rotina de quem perdeu tudo
Em meio aos boletins técnicos e gráficos de monitoramento, a realidade nas comunidades atingidas é dura e angustiante. Em bairros como Educandos, São Raimundo e Aparecida, em Manaus, moradores convivem com as águas invadindo os cômodos de suas casas, danificando móveis, alimentos e documentos. Muitos tiveram que improvisar passarelas de madeira, conhecidas localmente como “marombas” para se locomover dentro de suas próprias residências.
“Não deu tempo de tirar nada. A água subiu de uma hora pra outra”, relata Lucinete Alves, moradora da zona sul da capital. “Perdi minha geladeira, o fogão, e agora estou na casa da minha cunhada com meus três filhos. A gente não sabe quando vai poder voltar.”
No interior, a situação é ainda mais complexa. Em cidades como Barcelos, Anamã, Manacapuru e Itacoatiara, comunidades inteiras ficaram isoladas. A única forma de acesso passou a ser por canoas ou barcos regionais. As escolas foram fechadas, centros de saúde comprometidos, e a produção rural, base econômica de muitas famílias, arrasada pela força da água.
A estudante Jéssica Fernandes, de 15 anos, conta que está tendo dificuldades para acompanhar as aulas online. “Aqui o sinal de internet é fraco, e às vezes falta energia. Fica difícil aprender desse jeito, mas a gente tenta”, diz.
Uma crise anunciada em meio ao colapso climático
Especialistas ambientais têm soado o alarme para o que chamam de uma nova era de extremos climáticos na Amazônia. Secas prolongadas e cheias históricas se alternam num ciclo imprevisível, com impactos diretos não só sobre o meio ambiente, mas também sobre a saúde pública, a educação, a segurança alimentar e a infraestrutura regional.
Para a climatologista Francisca Tavares, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), o atual cenário está inserido em um contexto mais amplo de aquecimento global. “A região amazônica tem sofrido alterações em seu padrão de chuvas e temperatura. A evapotranspiração das árvores está diminuída por conta do desmatamento, e isso afeta a formação de nuvens e a dinâmica dos rios. Além disso, fenômenos como o El Niño e a oscilação do Atlântico tropical têm provocado distorções nos regimes de chuva.”
Segundo ela, eventos como o registrado agora tendem a se repetir com maior frequência, exigindo uma mudança de postura por parte dos governos. “É preciso ir além da resposta emergencial. Precisamos de políticas públicas estruturantes, com investimento em habitação segura, saneamento básico, mobilidade em áreas alagadiças e um modelo de desenvolvimento que respeite os limites do ecossistema.”
Assistência emergencial busca aliviar sofrimento da população
Diante da calamidade, o governo do estado do Amazonas, com apoio do governo federal e de organizações humanitárias, montou uma força-tarefa para levar ajuda às áreas atingidas. Até agora, foram distribuídas 580 toneladas de alimentos, além de 57 mil copos de água potável, kits médicos, colchões, cobertores e unidades móveis de purificação de água.
Barcos da Defesa Civil, da Marinha e do Corpo de Bombeiros têm atuado no transporte de insumos, no resgate de pessoas e no mapeamento das zonas de risco. Equipes multidisciplinares também foram enviadas para prestar assistência psicológica e médica às populações afetadas.
“Estamos atuando 24 horas por dia em coordenação com os municípios”, afirmou o coronel Francisco Máximo. “Mas também alertamos que esta não será a última cheia. O cenário climático indica que teremos novos eventos extremos nos próximos anos, e por isso, é fundamental preparar a população e investir em prevenção.”
Infraestrutura deficiente agrava impacto das inundações
A cheia de 2025 escancarou um problema crônico na Amazônia: a precariedade da infraestrutura urbana e rural. Em diversas comunidades ribeirinhas, os moradores vivem em palafitas frágeis, sem acesso a saneamento básico, com vias de acesso precárias e sem qualquer sistema de drenagem eficiente.
Mesmo em Manaus, capital do estado e maior centro urbano da região, bairros inteiros enfrentam enchentes todos os anos, em especial entre abril e julho. “A cidade cresceu sobre áreas alagáveis, muitas vezes sem planejamento, e isso torna as cheias ainda mais destrutivas”, explica o urbanista Jorge Soares, do Instituto de Planejamento Urbano de Manaus.
Ele aponta que é urgente a requalificação de áreas críticas, com obras de contenção de cheias, construção de moradias seguras e regularização fundiária. “Não se trata apenas de reconstruir o que foi perdido, mas de construir um futuro mais resiliente.”
Solidariedade e reconstrução: caminhos possíveis após a crise
Em meio à devastação, gestos de solidariedade têm surgido como alento. Campanhas organizadas por igrejas, escolas, coletivos e ONGs mobilizam doações de roupas, alimentos e produtos de higiene. Em redes sociais, vídeos mostram voluntários construindo marombas, distribuindo marmitas e acolhendo famílias desabrigadas.
No entanto, a reconstrução de vidas e comunidades exigirá mais do que boa vontade. Será necessário planejamento, investimento contínuo e um pacto de responsabilidade compartilhada entre os diversos níveis de governo, sociedade civil e setor privado.
A economista e pesquisadora Denise Gadelha, do Instituto de Desenvolvimento Sustentável, acredita que a cheia pode ser um ponto de inflexão. “Esta tragédia mostra que não é mais possível adiar as mudanças estruturais. O estado precisa de um plano de adaptação climática que inclua educação ambiental, geração de renda sustentável, acesso a crédito para pequenos agricultores e políticas de proteção social para os mais vulneráveis.”
Um futuro incerto, mas que ainda pode ser transformado
O que se vive hoje no Amazonas é mais do que um evento pontual. É o reflexo de um planeta em desequilíbrio, onde os extremos climáticos deixaram de ser exceção para se tornarem rotina. A floresta amazônica, considerada o pulmão do mundo, está adoecendo – e junto com ela, milhões de pessoas que dela dependem.
Se nada for feito para frear o aquecimento global, especialistas alertam que as cenas vistas em 2025 poderão se repetir – e de forma ainda mais grave. Por isso, a cheia atual não deve ser tratada apenas como uma catástrofe passageira, mas como um chamado urgente à ação.
Enquanto as águas não recuam, famílias continuam a lutar diariamente por dignidade, segurança e esperança. E é sobre esses pilares que o Amazonas precisará construir seu caminho para o futuro.











































