As Conferências do Clima da ONU costumam operar em duas órbitas paralelas: de um lado, a esfera oficial, com seus diplomatas, negociadores e pavilhões estatais, do outro lado o universo pulsante e crítico da sociedade civil que se manifesta em eventos autônomos como a Cúpula dos Povos. Historicamente, essas duas esferas raramente se tocam de forma significativa. Mas em Belém, sede da COP30, os sinais de uma convergência inédita começam a surgir, prometendo um diálogo mais profundo entre o poder e a rua.

O epicentro dessa mudança foi uma reunião na última segunda feira que colocou frente a frente o presidente da COP30, o embaixador André Corrêa do Lago, e representantes da Comissão Política da Cúpula. O encontro, que contou com a presença de lideranças de redes pan amazônicas, movimentos de atingidos por barragens e campanhas globais por justiça climática, foi mais do que um ato protocolar. Foi um avanço estratégico nas negociações políticas pelo reconhecimento da voz dos movimentos sociais no palco principal das decisões sobre o futuro do planeta.

O Peso de um Reconhecimento Político
A presença confirmada de Corrêa do Lago na Cúpula dos Povos no dia 16 de novembro, data de encerramento do evento, foi recebida como uma vitória. Doris Vasconcelos, da Rede Eclesial Pan Amazônica, abriu a reunião ressaltando a dimensão do que está em jogo. Ela lembrou que a Cúpula não é um evento local ou mesmo nacional, mas uma construção global que envolve múltiplos continentes. O seu questionamento sobre como a presidência da COP percebia esse espaço em um momento tão crucial para o país e o planeta foi o ponto de partida para um diálogo franco.
Durante a conversa, o embaixador não apenas reconheceu a importância da Cúpula como um espaço legítimo de articulação, mas defendeu que as demandas que emanam dela precisam estar conectadas ao processo oficial da conferência. Ele convidou os movimentos a se integrarem mais ativamente à chamada agenda de ação e aos canais de enviados, que funcionam como pontes institucionais capazes de absorver e traduzir os debates acumulados pela sociedade civil em diretrizes práticas.
Da Declaração à Plenária Oficial
O momento mais aguardado da reunião veio com a resposta de Lago sobre sua participação na entrega da Declaração da Cúpula dos Povos. Este documento, que consolidará as propostas e ações consideradas essenciais para o enfrentamento da crise climática, será o principal legado do encontro. Ao ser questionado sobre recebê lo e permitir sua leitura em um espaço oficial da COP30, a resposta do embaixador foi direta e afirmativa.
“Tenho o maior prazer em receber a declaração dos povos dia 16. Ter a leitura na plenária oficial seria mais do que natural”, disse ele, complementando que as questões discutidas devem ser incorporadas. “Sou absolutamente favorável. Temos que apoiar”. Essa declaração representa uma quebra de protocolo em relação a COPs anteriores, onde as demandas da sociedade civil frequentemente ficavam restritas a eventos paralelos, sem eco nos plenários principais.

Desafios Abertos Credenciais e Liberdade de Expressão
Apesar do tom positivo, a conversa também abordou pontos sensíveis. A demanda por mais credenciais para representantes de movimentos sociais, especialmente de entidades de base que não possuem status de observadoras na ONU, foi um deles. Maureen Santos, da organização Fase, e Rachitaa Gupta, da campanha global por justiça climática, argumentaram pela necessidade de garantir a participação de lideranças que estão na linha de frente dos impactos climáticos. Lago admitiu que a distribuição desses passes é um processo mais complexo, mas se comprometeu a analisar a questão.
Outro tema delicado foi a garantia da liberdade de expressão, especificamente em relação a atos de solidariedade à Palestina. Rachitaa lembrou que em eventos recentes da ONU, como o de Bonn na Alemanha, manifestações foram impedidas no espaço oficial. O presidente da COP30 foi enfático em seu compromisso com os direitos humanos e a liberdade de manifestação, posicionando se pessoalmente sobre a questão palestina. “Como brasileiro, apoio a Palestina. Nesse estágio, é inacreditável o que está acontecendo”, afirmou, garantindo que, dentro de sua autoridade, fará o possível para que vozes históricas e urgentes como essa tenham seu espaço garantido em Belém.
Uma Cúpula que Pensa o Futuro
A Declaração dos Povos que será entregue ao embaixador é fruto de um processo amplo de construção coletiva. Seus seis eixos temáticos abordam desde a transição justa e o combate ao racismo ambiental até a soberania alimentar, a defesa das cidades e periferias e o protagonismo do feminismo popular na resistência dos territórios. A Cúpula, que acontecerá no campus da Universidade Federal do Pará, é pensada não como um evento isolado, mas como um marco em um processo contínuo de articulação. “A ideia é que a gente não pare em Belém, mas essa Cúpula sirva como um espaço para a sociedade civil global enraizar, construir alianças políticas”, explicou Maureen Santos.

O gesto de André Corrêa do Lago, portanto, não é apenas simbólico. Ele sinaliza a possibilidade real de que a COP30 em Belém seja lembrada não só pelas negociações entre nações, mas por ter construído uma ponte sólida e respeitosa com os povos que, em última instância, são os verdadeiros guardiões do clima.





































