A proliferação de novos projetos privados na Amazônia para gerar créditos de carbono tem gerado um cenário de disputa e preocupação. Enquanto o Ministério do Meio Ambiente e cientistas defendem uma abordagem mais abrangente, temendo a ação de empresas oportunistas, povos indígenas e comunidades locais veem nessas iniciativas uma alternativa para levantar o dinheiro necessário para proteger a floresta.

O mercado de crédito de carbono, conhecido pelo arranjo de REDD+ (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal), é um dos temas que estará em destaque na COP30, em Belém, em novembro, e coloca em evidência a complexa relação entre o Estado, o mercado e as populações que vivem no bioma.
A lógica dos créditos de carbono é clara: eles são um valor financeiro associado à biomassa preservada, ou seja, às árvores que deixam de ser derrubadas e, consequentemente, evitam a emissão de dióxido de carbono. Cada crédito equivale a uma tonelada de carbono que não foi lançada na atmosfera e pode ser vendida no mercado voluntário para empresas que desejam compensar sua pegada ecológica.
Embora a ideia tenha surgido há algumas décadas, o setor estima que mais de 50 milhões de créditos já tenham sido emitidos, com preços que variaram de US$ 3 a US$ 30 por tonelada.

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Entre a fiscalização oficial e o mercado voluntário
A disputa principal se dá entre os projetos locais de REDD+, associados a áreas específicas, e os programas jurisdicionais, que abrangem grandes extensões de terra, como países ou estados inteiros. O maior exemplo brasileiro de projeto jurisdicional é o Fundo Amazônia, que remunera o governo federal pela queda do desmate em toda a Amazônia Legal.
No entanto, a relação entre os projetos locais e os jurisdicionais é delicada, pois o carbono evitado em uma terra indígena, por exemplo, precisa ser descontado da conta do Fundo Amazônia para evitar a dupla contabilidade.
A crítica do governo e da academia é que a história desses projetos privados não é positiva. Roberta Cantinho, diretora de Políticas para Controle do Desmatamento e Incêndios do Ministério do Meio Ambiente (MMA), diz que o governo não é contra os projetos privados, mas ressalta que o histórico dessas iniciativas é ruim. “Eu lhe desafio a trazer um caso de sucesso. É importante a gente diferenciar o que é um programa jurisdicional de REDD+ do que é um projeto local de REDD+”.
O governo busca atuar junto à Comissão Nacional para REDD+ para tentar regulamentar o setor com padrões mais rigorosos, protegendo as comunidades dos chamados “caubóis do carbono”, empresas oportunistas que oferecem projetos de curto prazo e com distribuição desigual de recursos.
O cientista Raoni Rajão, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), aponta uma série de desafios. “Na Amazônia há um caos fundiário, já vimos situações em que até áreas griladas foram utilizadas para fazer projetos de REDD+”. Ele também questiona a metodologia de cálculo. “Acontece que quem calcula a expectativa [de créditos gerados] é quem vai ganhar o crédito”, diz.
Esse inflacionamento artificial dos créditos pode distorcer o cálculo de redução de emissões, comprometendo o objetivo central do REDD+. Rajão destaca ainda que “Se o indígena protege a floresta, ele merece ter recursos, mas um crédito de carbono dá direito a alguém lá do outro lado do mundo emitir uma tonelada de carbono. Você tem de ter certeza absoluta que aquela tonelada está sendo mitigada”.
Recursos na ponta: a visão das comunidades
Apesar das críticas, a visão das comunidades tradicionais é diferente. Elas veem nos projetos privados uma forma de compensar a demora no repasse de recursos oficiais. Lideranças indígenas relatam que o dinheiro prometido pelos programas governamentais não tem sido suficiente para bancar o trabalho de vigilância. “Precisamos que o recurso chegue na ponta”, diz Neidinha Suruí, líder do povo Paiter Suruí.
Ela defende que, embora o governo precise de apoio, os recursos devem chegar diretamente aos territórios. “A gente não é contra que parte do recurso vá para o governo, porque o governo precisa de apoio para que funcione, por exemplo, a Funai, que tem um orçamento irrisório. Mas se o território é indígena, se é quilombola, se é extrativista, precisa entrar recurso diretamente para o território.”
A líder Tenharim, Daiane Tenharim, que está em fase de planejamento para um projeto de REDD+, compartilha da mesma visão. Para ela, esses projetos são uma forma de justiça para quem sempre se empenhou na proteção da floresta. “A gente vê nesse projeto o fortalecimento daquilo que a gente já faz na preservação”, diz. Ela ressalta que “a gente tem os agentes ambientais que trabalham nessa questão de monitoramento e vigilância territorial. O que a gente não têm é transporte para eles fazerem essas atividades.”
A consultoria Wildlife Works, que trabalha com os Tenharim, defende que a iniciativa partiu das próprias comunidades e reconhece que a atuação privada preenche uma lacuna deixada pelo Estado. A diretora Monique Vanni afirma que “quem não está em campo talvez não tenha consciência do desamparo e da falta de recurso que essas populações têm, em um contexto de total ausência do Estado”.
A Aliança Brasil NBS, que representa as empresas do setor, também defende a complementaridade entre os modelos. A diretora-executiva, Julie Messias, afirma que “Consideramos legítimas as políticas públicas que estruturam programas jurisdicionais, e defendemos que há espaço para uma convivência verdadeiramente complementar entre essas iniciativas e os projetos privados”.
Segundo ela, “Enquanto o projeto privado atua de forma direta e localizada, com foco na redução do desmatamento em territórios específicos e no engajamento próximo das comunidades, os programas jurisdicionais operam em escala mais ampla, criando condições e políticas que favorecem a redução do desmatamento em todo o Estado.”







































