O El Niño, fenômeno climático globalmente conhecido por alterar padrões de chuva e temperatura, também exerce uma influência profunda e ainda pouco compreendida sobre o ecossistema marinho do Oceano Atlântico. Um estudo publicado na revista Nature Reviews Earth & Environment mostra que os efeitos do El Niño–Oscilação Sul (ENOS) ultrapassam o Pacífico, reorganizando correntes, nutrientes e cadeias alimentares no Atlântico e influenciando diretamente a pesca na América do Sul e na África.

Ao reunir evidências científicas produzidas nas últimas décadas, a pesquisa revela que o ENOS funciona como um regulador silencioso da produtividade marinha. Dependendo da região, da espécie explorada e do período analisado, o fenômeno pode tanto impulsionar quanto reduzir a abundância de peixes e crustáceos de interesse comercial. No Brasil, país fortemente dependente de recursos costeiros e estuarinos, os impactos são variados e regionais, refletindo a complexidade do sistema oceânico-atmosférico.
Um fenômeno global com efeitos além do Pacífico
O ENOS resulta da interação entre o oceano e a atmosfera no Pacífico tropical, alternando períodos de aquecimento (El Niño) e resfriamento (La Niña). Essas variações afetam os ventos, a pressão atmosférica e as correntes oceânicas, desencadeando respostas em escala planetária. O estudo mostra que o Atlântico responde a esse sinal climático de maneira indireta, mas decisiva.
Mudanças na circulação atmosférica alteram padrões de chuva, temperatura da superfície do mar, salinidade e ventos sobre o Atlântico. Essas transformações influenciam a descarga de grandes rios, a estratificação da coluna d’água e a disponibilidade de nutrientes e oxigênio. Como consequência, o fitoplâncton — base de toda a cadeia alimentar marinha — reage rapidamente, afetando peixes, camarões e outras espécies exploradas pela pesca.
Segundo os autores, compreender essa teia de interações é essencial para explicar por que a produtividade pesqueira oscila de forma aparentemente contraditória ao longo do tempo. O mesmo fenômeno que prejudica determinados estoques pode favorecer outros, dependendo das condições locais e da biologia das espécies.
Amazônia, pluma fluvial e pesca no Norte e Nordeste
No Norte do Brasil, o El Niño atua principalmente pela chamada via tropical. Ele está associado à redução das chuvas na Amazônia, como observado nos eventos recentes de 2023 e 2024. Menos chuva significa menor vazão dos rios, especialmente do Amazonas, cuja pluma fluvial é um dos elementos mais importantes para a produtividade marinha na costa Norte e Nordeste.
Essa pluma carrega grandes quantidades de nutrientes e matéria orgânica, fertilizando as águas costeiras e sustentando uma rica cadeia alimentar. Quando o aporte diminui, a produção de fitoplâncton tende a cair, afetando peixes e outros organismos marinhos. De acordo com Regina Rodrigues, professora da Universidade Federal de Santa Catarina, essa redução pode comprometer a base ecológica da pesca em determinadas áreas.
Curiosamente, o estudo mostra que nem todos os impactos são negativos. A diminuição da turbidez da água, causada pela menor descarga fluvial, permite maior penetração da luz solar. Esse fator pode favorecer espécies como o camarão marrom, cuja captura pode aumentar em anos de El Niño, ilustrando como o fenômeno reorganiza oportunidades e riscos no ambiente marinho.

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Chuvas no Sul e ganhos pontuais na pesca
No Sul do Brasil, o El Niño se manifesta de forma distinta, pela via extratropical. Nessa região, o fenômeno costuma estar associado ao aumento das chuvas, como ocorreu de maneira intensa no Rio Grande do Sul em 2024. O maior aporte de água doce e nutrientes para o oceano cria condições favoráveis para algumas espécies, ampliando a produtividade pesqueira em determinados períodos.
O estudo também aponta efeitos relevantes na região central do Atlântico Sul, onde o El Niño está relacionado ao aumento da captura da albacora, um tipo de atum de grande importância comercial. Ainda assim, os autores alertam que essas respostas não são estáveis ao longo do tempo. Variações sazonais, diferenças entre espécies e mudanças de longo prazo no clima podem alterar completamente os resultados observados em décadas anteriores.
Essa variabilidade explica por que previsões simples frequentemente falham. O oceano responde ao ENOS de forma dinâmica, e os efeitos podem se inverter conforme o contexto ambiental e climático.
Ciência integrada para um oceano em transformação
Para Ronaldo Angelini, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e coautor do artigo, o principal avanço do estudo está na integração entre processos físicos, biogeoquímicos e ecológicos. Essa abordagem permite compreender por que as respostas da pesca ao El Niño não seguem padrões lineares ou previsíveis.
Os pesquisadores destacam ainda importantes lacunas de conhecimento. A escassez de séries históricas longas sobre pesca, especialmente em países do Sul Global, e as limitações das observações por satélite dificultam análises mais precisas. Por isso, o artigo propõe um roteiro para o desenvolvimento de modelos quantitativos capazes de estimar incertezas e separar os efeitos do ENOS de outras variabilidades naturais e antrópicas.
O estudo é resultado de um projeto internacional financiado pela União Europeia, envolvendo instituições da Europa, da África e do Brasil. Ele reforça a ideia de que não existe uma resposta única do Atlântico ao El Niño, o que exige estratégias de manejo pesqueiro adaptadas às realidades locais.
Diante da escala global do fenômeno e da intensificação das mudanças climáticas, os autores defendem um esforço coordenado de monitoramento oceânico. A ampliação de redes existentes, a integração de observatórios costeiros e o uso de protocolos comuns são vistos como passos essenciais para garantir dados comparáveis e apoiar decisões mais justas e eficazes.
Em um cenário de oceanos em rápida transformação, compreender como o El Niño reorganiza a vida marinha no Atlântico deixa de ser apenas uma questão científica. Trata-se de um desafio estratégico para a segurança alimentar, a economia costeira e a resiliência das comunidades que dependem do mar.













































