Mazzucato defende união entre Estado empreendedor e social


Em um dos debates mais aguardados da Zona Verde da COP30, em Belém, a economista Mariana Mazzucato, professora da University College London, defendeu que o século 21 exige uma transformação profunda na forma como os países organizam seu aparato estatal. Para ela, não basta fortalecer um Estado empreendedor ou ampliar o Estado de bem-estar social. O desafio, agora, é combinar os dois modelos e fazê-los trabalhar juntos em torno de problemas que ameaçam diretamente a vida coletiva, como a crise climática.

Antônio Cruz/Agência Brasil

O argumento central de Mazzucato — reconhecida internacionalmente por sua defesa de políticas públicas orientadas por missões — é direto: governos do mundo inteiro falham não por falta de recursos, mas por falta de prioridades. Ela critica narrativas segundo as quais países, especialmente os mais ricos, alegam limitações orçamentárias para justificar a ausência de investimentos em saúde, clima ou inovação sustentável. Na visão da economista, essas barreiras são artificiais. Quando há vontade política, afirma, as nações encontram meios para financiar o que consideram essencial.

O conceito de bem comum ocupa o centro de sua reflexão. Diferente da ideia tradicional de bem público, geralmente tratada na economia como uma falha de mercado que o Estado precisa corrigir, o bem comum é construído coletivamente. Ele nasce do que comunidades valorizam, preservam e compartilham. Por isso, segundo Mazzucato, nenhuma teoria econômica moderna é capaz de acessá-lo com a profundidade que o conhecimento indígena oferece há séculos. Colocar esse conhecimento no centro das decisões de governo, da economia e dos sistemas de inovação seria, para ela, uma virada histórica — e urgente.

A fala da economista dialogou intensamente com outros participantes do painel, reforçando que a transformação do desenvolvimento econômico passa, necessariamente, pela maneira como se reconhece o papel dos povos originários. Para André Baniwa, consultor de medicinas indígenas da Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, o modelo econômico vigente ignora deliberadamente os serviços ecossistêmicos prestados pelas comunidades indígenas. Essa chamada economia invisível, diz ele, sustenta rios, florestas e lagos, mas raramente é contabilizada nas contas nacionais. O resultado é uma profunda assimetria: aquilo que garante a manutenção de ecossistemas inteiros permanece sem reconhecimento e sem remuneração.

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Foto: Sergio Moraes/COP30

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Essa crítica também orienta a perspectiva da iniciativa Amazônia+10, liderada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e apoiada pelo Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (CONFAP). O representante da iniciativa, João Reis, destacou que a sociobioeconomia — conceito que integra biodiversidade, conhecimento tradicional e desenvolvimento territorial — só se sustenta quando cria condições para que comunidades locais liderem os processos. Por isso, os projetos apoiados pela Amazônia+10 são conduzidos, obrigatoriamente, por pesquisadores e instituições sediadas na Amazônia Legal, garantindo protagonismo regional e conexão direta com saberes tradicionais.

Reis enfatizou, porém, que transformar esse modelo em um mercado de bioeconomia real exige romper com a lógica puramente mercantil. Para muitas cadeias produtivas, o mercado não consegue compreender a natureza coletiva, espiritual e territorial da produção tradicional. E impor esse paradigma, alertou, provocaria rupturas culturais e econômicas graves.

A professora Nirvia Ravena, da Universidade Federal do Pará, ampliou essa discussão ao afirmar que o processo de institucionalização dos conhecimentos tradicionais não pode ser conduzido de fora para dentro. São os povos indígenas que devem definir como seus saberes serão reconhecidos, regulados e protegidos — e não o Estado nacional ou o mercado. Para Ravena, a verdadeira inovação está justamente nas práticas originárias, que já demonstraram ser capazes de sustentar a floresta e criar alternativas de economia de baixo impacto muito antes que o debate climático ganhasse visibilidade global.

O encontro, marcado por falas convergentes e críticas profundas, deixou um recado claro: as soluções para a crise climática não surgirão de modelos econômicos tradicionais, mas da capacidade de reimaginar o papel do Estado, de reorientar prioridades e, sobretudo, de reconhecer que a inovação mais transformadora pode vir justamente de quem mantém a floresta em pé.