Um novo mapeamento pioneiro da sociobioeconomia na Amazônia Legal aponta uma realidade que incomoda: mais de 84 000 unidades produtivas extrativistas — compostas por agricultores familiares, comunidades tradicionais e produtores da floresta — estão totalmente desconectadas da energia elétrica. O estudo “Mapeamento da sociobioeconomia: bases para políticas de inclusão energética na Amazônia Legal”, lançado pelo IEMA em novembro de 2025, cruzou dados de produção vegetal, atividades agroextrativistas e acesso à energia nos nove estados que compõem a Amazônia Legal, construindo uma radiografia da exclusão energética e seus impactos.

O levantamento recupera números expressivos e simbólicos. Nos estados de Roraima, Amazonas e Pará, os índices de estabelecimentos extrativistas sem acesso à energia elétrica são de aproximadamente 74%, 66% e 45%, respectivamente. No total, acredita-se que essas unidades representem milhares de famílias que dependem da floresta para viver, produzir e conservar — e que, pelo simples fato de não ter luz, enfrentam barreiras para agregar valor, processar produtos e desenvolver cadeias sustentáveis.
Produção que planta esperança, mas esbarra na infraestrutura
O estudo destaca que a produção extrativista vegetal nessa região movimenta cerca de 600 mil toneladas por ano — cerca de 73% da produção nacional do setor. Itens como açaí (≈450 mil toneladas), babaçu (≈77 mil toneladas) e castanha-do-Brasil (≈27 mil toneladas) lideram esse cenário. No entanto, a falta de energia elétrica de qualidade impede que muitos produtores se beneficiem plenamente desse rendimento: sem eletrificação adequada, falta maquinário, refrigeração, conectividade, e até escoamento da produção se torna mais caro ou inviável.
A correlação entre produção extrativista e exclusão elétrica revela que comunidades ribeirinhas ou em acessos fluviais são fortemente penalizadas — muitas vezes isoladas de malhas rodoviárias ou ferroviárias, o que soma à vulnerabilidade estrutural. O estudo ainda mostra baixa diversidade produtiva: em muitos municípios, 113 núcleos concentram-se em apenas um produto; outros 118 em dois. Isso evidencia a urgência de políticas que vão além de “dar luz” — é preciso fortalecer cadeias produtivas, logística, assistência técnica e inovação territorial.

VEJA TAMBÉM: Inovação em destaque: Itaipu Parquetec acelera a energia limpa na COP30
Inclusão energética como vetor da sociobioeconomia
Para o IEMA, esse cenário reforça que “só levar luz não é suficiente”. Como afirma o diretor-executivo André Luis Ferreira, “a Amazônia precisa de energia e potência… é necessário uma energia elétrica de qualidade para garantir o acesso a direitos básicos”. Em outras palavras: o acesso à energia precisa estar integrado à inclusão produtiva, à conservação da floresta em pé e à justiça social.
Esse desenho de política pública exige olhar multidimensional: dados precisos — e o estudo mapeia justamente essa falta de informação —, infraestrutura de escoamento, logística, acesso à internet, suporte técnico para extrativistas e agricultores familiares. O relatório indica ainda que o atual Censo Agropecuário registra apenas presença/ausência de eletricidade, mas não considera potência, frequência ou finalidade da energia — o que dificulta planejamentos eficazes.
Caminhos recomendados para transformar o retrato
O mapeamento identifica ações estratégicas: revisão do Censo Agropecuário em 2025-26 para acompanhar realidade produtiva da floresta; integração de dados territoriais com planejamento energético; expansão do programa Luz para Todos para atender a demandas produtivas e não apenas residenciais; fomento a Arranjos Produtivos Locais (APLs) em cadeias extrativistas; investimento em logística fluvial e digital; e assistência técnica especializada para comunidades tradicionais.
A implicação vai além: trata-se de reconhecer que a sociobioeconomia — modelo produtivo que une floresta, comunidades e renda — depende de energia elétrica funcional. Garantir a “floresta em pé” passa por permitir que quem vive da biodiversidade tenha plena capacidade de produzir, agregar valor, sustentar seus territórios e participar da economia global.
Desigualdades que persistem e urgência de ação
Os dados gráficos trazem outro alerta: quase metade dos estabelecimentos extrativistas sem energia elétrica no Pará acumulam mais de 28 500 unidades. Municípios como São Gabriel da Cachoeira (AM) e Cametá (PA) registram mais de quatro mil unidades cada, demonstrando que a vulnerabilidade é territorialmente concentrada.
Além disso, a ausência de infraestrutura energética compromete diretamente direitos constitucionais das comunidades — como saúde, educação, conectividade, processamento de alimentos e economia local — e impede que o Estado e a sociedade alcancem a meta de infraestrutura de base que permita o desenvolvimento sustentável da Amazônia.
O estudo do IEMA é uma chamada de alerta e de oportunidade. Ele mostra que a Amazônia Legal não pode ser vista apenas como reserva ambiental ou fronteira produtiva — ela é também lar de milhares de produtores extrativistas que dependem da energia elétrica para transformar seus recursos em riqueza e bem-viver. A inclusão energética, quando integrada à valorização da sociobiodiversidade, se revela um vetor de equidade, economia e conservação.
As políticas públicas que não levarem essa conexão em conta correm o risco de continuar replicando desigualdades históricas, desconectando comunidades das suas próprias capacidades. Mas se respondidas com estratégia, dados e ambição, as recomendações desse relatório podem transformar áreas de exclusão em territórios de produção sustentável — e permitir que a Amazônia, além de floresta em pé, seja fonte de renda, inclusão e justiça.





































