O Pesadelo Ancestral do Nordeste brasileiro: Fóssil de Formiga Infernal de 113 Milhões de Anos Surpreende Cientistas

Há cem milhões de anos, o Brasil era habitado por criaturas muito além dos dinossauros. Bem perto do chão, formigas aladas de cerca de 1,5 centímetro, equipadas com mandíbulas afiadas em forma de foice e um ferrão, poderiam ser um verdadeiro tormento. Esses insetos, classificados na subfamília Haidomyrmecinae, ganharam o sugestivo apelido de formigas infernais devido à sua aparência hostil. Uma pesquisa recente, publicada em maio na revista Current Biology, revelou que a espécie mais antiga desse grupo extinto, batizada de Vulcanidris cratensis, habitou há 113 milhões de anos o território que hoje corresponde ao município de Araripe, no Ceará. O fóssil foi identificado na formação Crato, uma unidade geológica que se estende pela divisa de Ceará, Pernambuco e Piauí. Esta é a primeira espécie de formiga infernal encontrada em solo brasileiro, e sua descoberta é um marco na paleontologia mundial.

Uma presença global inusitada
Antes desta revelação, paleoentomólogos já haviam catalogado 12 espécies de formigas infernais a partir de fósseis preservados em âmbar de Mianmar, na Ásia, além de uma espécie nos Estados Unidos e outra na França. A singularidade do fóssil brasileiro reside no fato de ser o mais antigo entre todos os exemplares conhecidos, reescrevendo a cronologia da distribuição dessas criaturas ancestrais.
A presença dessas formigas no Brasil é um dado que amplia drasticamente o que se sabia sobre a sua distribuição geográfica. Naquela era remota, os continentes estavam organizados em dois grandes supercontinentes: Laurásia, que reunia o que hoje conhecemos como o Hemisfério Norte, e Gondwana, que compreendia a atual América do Sul, África, Índia, Austrália e Antártida. “Todas as espécies encontradas antes estavam na Laurásia. Agora sabemos que elas estavam tanto no hemisfério Norte quanto no Sul”, explica a entomóloga Gabriela Procópio Camacho, do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo MZ USP.
Anterior à essa descoberta no Ceará, a ciência já suspeitava, por meio de estudos genéticos de formigas atuais da América do Sul e África, que as primeiras espécies desses insetos haviam surgido no continente sul americano. Contudo, essa hipótese era desafiada pela ausência de fósseis antigos nessas regiões. “O problema é que, apesar disso, os fósseis mais antigos conhecidos eram do hemisfério Norte, particularmente da Ásia”, comenta Camacho. “A descoberta dessa nova espécie no Ceará, com cerca de 110 milhões de anos, indica se tratar da formiga mais antiga conhecida até hoje, de um grupo considerado bem primitivo, o que fortalece a ideia de que a América do Sul teve um papel central no início da história evolutiva das formigas e pode ter sido um dos lugares onde elas começaram a se diversificar.”
Adaptação em climas contrastantes
Há 100 milhões de anos, a região que hoje corresponde a Mianmar era caracterizada por um clima quente e chuvoso, com uma vegetação densa, típica de florestas tropicais úmidas. Em contraste, os sedimentos da formação Crato revelam um ambiente com um clima seco, lagos rasos, estações bem definidas e uma vegetação mais variada, incluindo árvores coníferas, samambaias e, notavelmente, as primeiras plantas com flores do mundo. “Isso mostra que as formigas infernais tinham uma boa capacidade de adaptação, o que pode explicar como elas conseguiram se espalhar por várias partes do planeta durante o Cretáceo”, pontua a pesquisadora. Essa plasticidade ecológica é um testemunho da robustez evolutiva desses insetos.
Uma descoberta fortuita
A identificação do fóssil foi, em grande parte, resultado do acaso. “O fóssil foi doado junto a outros por uma família que tinha uma coleção particular. Quando começamos a fazer a curadoria, vimos esse inseto que não se parecia com nenhum outro que conhecíamos no Brasil”, relata Camacho. O primeiro autor do artigo, Anderson Lepeco, biólogo em treinamento técnico no MZ USP e bolsista da FAPESP, foi quem percebeu a semelhança com os fósseis de formigas infernais de Mianmar. Diante da singularidade do achado, os pesquisadores decidiram realizar um exame tomográfico, que permitiu estudar o corpo do inseto em três dimensões e confirmar a identificação com precisão.

O excelente estado de preservação do fóssil e as características anatômicas peculiares desses insetos ancestrais facilitaram significativamente o trabalho dos pesquisadores. “As formigas infernais tinham mandíbulas verticais, usadas para morder de baixo para cima. É completamente diferente das formigas de hoje, que se alimentam com movimentos horizontais”, detalha Camacho, ilustrando a notável diferença evolutiva. Essas mandíbulas em forma de foice eram utilizadas para carregar alimentos vegetais, como a seiva de árvores, e também para capturar outros insetos. Um exemplar fóssil de formiga ancestral de Mianmar, descrito por pesquisadores dos Estados Unidos e da França em um artigo publicado em 2020 na Current Biology, foi encontrado preservado em âmbar com as mandíbulas fincadas em outro inseto, oferecendo uma imagem vívida de sua habilidade predatória.
Redefinindo a história das formigas no Crato
O artigo assinado pelos pesquisadores brasileiros sugere que a raridade de exemplares desse grupo na formação Crato, onde a única espécie encontrada é a V. cratensis, indica que as formigas infernais não eram predadores dominantes naquele ambiente específico. Essa constatação abre caminho para a retomada de estudos anteriores. Em 1989, o zoólogo Carlos Roberto Brandão, do MZ USP, nomeou uma espécie de formiga do Crato como Cariridris bipetiolata. “O problema é que o fóssil estava em uma coleção particular à qual os pesquisadores perderam acesso e a descrição de Brandão foi baseada em um desenho e uma fotografia do fóssil, e não em uma tomografia 3D, como a de V. cratensis“, explica Camacho. “Alguns pesquisadores classificaram o fóssil como uma vespa e a identidade acabou contestada.”
A nova publicação fornece uma base mais sólida para o trabalho de Brandão, embora Camacho ressalte que, devido às tecnologias empregadas, “a nova descoberta é atualmente considerada a primeira formiga fóssil do Crato validada com segurança pela ciência”.
A importância da tomografia na paleontologia
O paleontólogo Gabriel Osés, pesquisador colaborador no Instituto de Física da USP, que estuda fósseis de insetos do Crato e não participou do estudo, reforça a importância da técnica utilizada. “A tomografia é muito importante porque os detalhes anatômicos que ela revela permitem pensar sobre os modos de vida desses animais”, defende. Ele enfatiza que, no caso dos insetos, essa tecnologia é fundamental para entender a complexa relação entre os organismos e as plantas em ecossistemas do passado.
O fóssil brasileiro se distingue dos encontrados na Ásia por ser o único preservado em rocha, e não em âmbar. “Isso é uma característica muito particular da formação Crato, conhecida pela preservação excepcional tanto de grandes animais quanto de insetos e outros artrópodes”, explica Osés. Na formação Crato, existem dois tipos de calcário onde é possível encontrar fósseis. Em um deles, de cor escura devido à abundância de matéria orgânica no passado, a preservação dos animais era mais precária. O outro tipo, de cor bege, era rico em um mineral chamado pirita. Quando oxidado, esse mineral forma hidróxidos de ferro, conforme detalhado na Pesquisa FAPESP nº 283.
São alguns desses minerais que, ao longo de milhões de anos, substituíram os tecidos de muitos organismos no Crato, preservando suas estruturas com notável fidelidade. No caso dos insetos, que são mais delicados e, por isso, mais difíceis de fossilizar do que os vertebrados, a ocorrência de uma fossilização que preserva o corpo inteiro, incluindo tecidos moles, é um evento raro e de valor inestimável para a ciência.
Formigas: Engenheiras de ecossistemas
Estudar essas formas de vida ancestrais é fundamental para compreendermos melhor os ambientes do passado e, por extensão, as dinâmicas ecológicas do presente. “As formigas de hoje são grandes engenheiras de ecossistemas”, afirma Camacho. “Elas tornam o solo mais poroso, facilitando a entrada de água e favorecendo a fertilidade.” Além disso, as formigas desempenham papéis cruciais no transporte de sementes e no controle da quantidade de pragas ou plantas invasoras que fazem parte de sua dieta. “Podemos considerar que, no passado, elas também desempenharam um papel importante”, sugere a pesquisadora. A descoberta da Vulcanidris cratensis não é apenas um feito paleontológico, mas um lembrete do intrincado e vital papel que esses pequenos seres desempenham na manutenção da vida em nosso planeta, desde as eras mais remotas.







































