A floresta amazônica, pulsação verde do nosso planeta, tem guardiões silenciosos, muitas vezes invisíveis aos olhos do reconhecimento oficial. Agora, uma pesquisa pioneira lança luz sobre um fenômeno de proporções monumentais: os territórios quilombolas em quatro nações amazônicas: Brasil, Colômbia, Equador e Suriname, emergem como baluartes incansáveis da preservação ambiental. O que já se observava em comunidades indígenas, a capacidade inata de salvaguardar o berço da vida terrestre, ganha um novo e poderoso paralelo.

Estudo inédito
O estudo inédito da respeitada organização Conservação Internacional, publicado com pompa e circunstância na revista Communications Earth and Environment, um braço editorial do prestigiado grupo Nature, desvela dados que transformam percepções.

De forma contundente, a pesquisa aponta que o desmatamento em terras afrodescendentes devidamente tituladas nesses países apresenta taxas que variam entre 29% e 55% menores quando comparadas a áreas com características geográficas e ambientais similares. Uma revelação que, por si só, reconfigura o mapa da conservação.
O reconhecimento tardio de um legado ancestral
A voz de Martha Cecilia Rosero Peña, diretora de Inclusão Social na Conservação Internacional e detentora de um Ph.D., ecoa com a dignidade de quem testemunha uma injustiça histórica.
“Os povos afrodescendentes das Américas serviram por muito tempo como guardiões do meio ambiente sem reconhecimento nem compensação, inclusive, a maioria de seus territórios nem sequer está formalmente reconhecida”, lamenta a pesquisadora. Sua fala, carregada de um pesar palpável, é um lembrete vívido da dívida que a sociedade global tem para com essas comunidades.
Contudo, ela ressalta com firmeza: “a evidência é indiscutível; o mundo tem muito a aprender com suas práticas de gestão territorial”. Essa constatação não é apenas um apontamento científico; é um chamado à reorientação de paradigmas, uma reavaliação profunda de quem detém o saber ancestral sobre a floresta.
Metodologia de pesquisa rigorosa e detalhada
Para chegar a tais conclusões, o estudo empregou uma metodologia rigorosa e detalhada. Comparou os quilombos titulados, abarcando a vasta diversidade de biomas nos quatro países latino americanos, com áreas semelhantes que, no entanto, excluíam os territórios indígenas. A explicação para essa distinção é oferecida por Sushma Shrestha, diretora de Ciência Indígena, Pesquisa e Conhecimento na Conservação Internacional e principal autora do artigo.
Ela detalha que essas “áreas fora dos territórios quilombolas apresentam características mensuráveis semelhantes, incluindo cobertura florestal inicial, uso e proteção da terra, tempo de viagem até cidades, elevação, entre outros”. Essa abordagem minuciosa garante que os resultados da pesquisa não sejam meros acasos, mas sim a manifestação de um impacto real e mensurável das comunidades quilombolas na integridade da paisagem natural.
O retrato do Brasil: Desafios e potencial em terras quilombolas
No Brasil, a magnitude do desafio e do potencial é gritante. Dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE revelam que apenas uma fatia ínfima, 4,3% da população quilombola do país, reside em territórios que alcançaram a tão almejada titulação.
A população quilombola total brasileira, que inclui tanto as comunidades tituladas quanto as que ainda aguardam por esse reconhecimento vital, soma 1,32 milhão de pessoas. Um contingente significativo que representa 0,65% do total de brasileiros, e que, em sua maioria, ainda vive à margem de garantias territoriais plenas. Esse cenário, longe de ser um mero dado estatístico, é um reflexo da urgência em acelerar os processos de titulação e reconhecimento dessas comunidades, não apenas por justiça social, mas por um imperativo ambiental inadiável.
Os achados da Conservação Internacional não se limitam apenas à redução do desmatamento. O levantamento descortina um tesouro inestimável. Esses territórios afrodescendentes na América Latina abrigam não só uma menor taxa de desflorestamento, mas também quantidades significativamente maiores de biodiversidade e de carbono irrecuperável. Este último, um conceito crucial para a compreensão da crise climática, refere se ao carbono armazenado em ecossistemas naturais que, uma vez perdido, não pode ser recuperado em um horizonte de tempo inferior a trinta anos.
Dimensão da riqueza natural
A dimensão da riqueza natural presente nessas terras é estonteante: mais da metade dessas áreas, precisamente 57%, figuram entre os 5% de regiões mais biodiversas de todo o planeta. No Equador, essa proporção atinge um impressionante índice de 99%, o que demonstra a excepcionalidade desses ecossistemas sob a gestão quilombola. No total, esses territórios de povos afrodescendentes armazenam mais de 486 milhões de toneladas de carbono irrecuperável.
Este dado, por si só, é um argumento irrefutável para a preservação dessas áreas sob a gestão direta das comunidades, o que se torna um pilar essencial na prevenção dos efeitos mais catastróficos das mudanças climáticas. A proteção desses territórios não é apenas uma questão local; é uma estratégia global para a saúde do planeta.
A ciência encontra o ativismo: Um chamado global
O artigo da Conservação Internacional não é apenas uma peça de pesquisa; é um marco. É a primeira investigação a entrelaçar de forma tão complexa e robusta dados estatísticos, espaciais e históricos para quantificar, com precisão científica, a função inestimável dos povos afrodescendentes na proteção da natureza.

Sua publicação, em um momento estratégico, ecoa o reconhecimento formal alcançado no ano anterior pela Convenção sobre Diversidade Biológica na Conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade COP16. Naquele fórum global, o papel vital que as pessoas afrodescendentes desempenham na conservação da biodiversidade e na consecução das metas globais de preservação foi, enfim, reconhecido.
Relação da pesquisa com a COP 30
A divulgação deste estudo se dá em um contexto de efervescência diplomática e ambiental, enquanto o Brasil se prepara para ser o anfitrião da tão aguardada cúpula climática da ONU, a COP30. Este evento de magnitude internacional direcionará os holofotes para o papel singular das Américas na mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Nesse palco, a voz e as práticas das comunidades quilombolas assumem uma relevância sem precedentes, oferecendo soluções comprovadas e eficazes para os desafios ambientais mais prementes.
As descobertas do estudo, apesar de animadoras, expõem uma lacuna gritante, uma desproporção que clama por correção. Embora quase uma em cada quatro pessoas na América Latina se identifique como afrodescendente, esses povos permanecem tristemente sub representados em arenas ambientais globais.
Incluem se aqui as cúpulas de clima e biodiversidade da ONU, justamente os espaços onde se delineiam políticas cruciais, se define o fluxo de financiamento e se tomam decisões de liderança que impactam diretamente suas vidas e seus territórios. Essa ausência não é apenas uma falha de representatividade; é uma perda inestimável de conhecimento, de perspectivas e de soluções que poderiam enriquecer e fortalecer as estratégias globais de conservação.

O futuro da conservação: Apoio e reconhecimento para os quilombos
Sushma Shrestha, a principal autora do artigo, reafirma a magnitude do legado quilombola e a urgência de sua visibilidade. “Durante séculos, as comunidades afrodescendentes têm gerido paisagens que sustentam tanto as pessoas quanto a natureza, no entanto, suas contribuições continuam sendo e grande parte invisíveis”, lamenta a pesquisadora.
Em sua voz, há um clamor por justiça e reconhecimento. Ela conclui com uma declaração poderosa: “Esta pesquisa deixa claro que sua gestão ambiental não é apenas histórica. Está em curso e deve ser reconhecida, apoiada e tomada como exemplo.” Essa fala não é apenas um apelo moral; é uma constatação científica, uma prova irrefutável de que as práticas sustentáveis dos quilombos são um modelo a ser seguido.
O estudo não se limita a apresentar dados; ele faz um chamado à ação. Propõe a adoção de medidas que, embora ainda necessárias para povos indígenas e comunidades locais, cujas contribuições para a conservação e direitos sobre a terra seguem sem o devido reconhecimento apesar da vasta evidência científica, agora se estendem de forma explícita aos quilombos.
Recomendação da Conservação Internacional
A recomendação da Conservação Internacional é clara e multifacetada. Em primeiro lugar, a titulação e o reconhecimento desses territórios quilombolas devem ser acelerados e universalizados. Em segundo lugar, é imperativo que haja um aumento significativo em pesquisa e financiamento para apoiar os afrodescendentes e o trabalho inestimável de conservação que eles realizam. Por fim, e de forma crucial, as práticas sustentáveis desses povos precisam ser integradas de forma orgânica e central nas políticas climáticas e de biodiversidade globais. Não como apêndices, mas como pilares fundamentais.
A voz do Embaixador Martin Kimani, Presidente do Fórum Permanente da ONU para Pessoas de Ascendência Africana, corrobora a tese do estudo com autoridade e convicção. “As comunidades afrodescendentes protegem ecossistemas críticos. Este estudo pioneiro quantifica seu impacto e demonstra que justiça, segurança da posse da terra e ganhos em biodiversidade estão alinhados”, afirma o embaixador.
Sua fala ressalta a interconexão indissociável entre direitos humanos, justiça social e a saúde ambiental do planeta. Ele conclui com um apelo contundente: “As negociações globais que buscam impacto real deve colocar a liderança afrodescendente no centro, e o Fórum Permanente as apoia para garantir esse espaço.” Essa declaração não é apenas uma manifestação de apoio; é um endosso institucional à centralidade da experiência quilombola nas discussões e soluções climáticas.
Perspectiva vital para a discussão
Angélica Mayolo, ex ministra da Cultura da Colômbia e bolsista MLK na Iniciativa de Soluções Ambientais do MIT, com suas raízes fincadas no centro afrodescendente de Buenaventura na Colômbia, traz uma perspectiva vital para a discussão. Ela afirma com clareza: “A titulação coletiva de terras para comunidades afrodescendentes é um mecanismo comprovado e eficaz para a conservação ambiental, contribuindo significativamente para a preservação de ecossistemas estratégicos na América Latina e no Caribe.”
Sua experiência pessoal e profissional valida a tese central do estudo, reforçando a ideia de que a garantia de direitos territoriais é um motor poderoso para a preservação ambiental. A titulação, portanto, não é apenas um ato de justiça, mas uma ferramenta poderosa de conservação que beneficia a todos.
A pesquisa da Conservação Internacional transcende a mera acumulação de dados. Ela é um farol que ilumina um caminho. O caminho da justiça social, da valorização do conhecimento ancestral e da compreensão de que a conservação ambiental eficaz passa, inevitavelmente, pelo reconhecimento e pelo fortalecimento das comunidades que, por gerações, têm sido as verdadeiras guardiãs da floresta. Os quilombos, com suas histórias de resistência e sabedoria, não são apenas beneficiários de políticas de conservação; eles são os protagonistas essenciais de um futuro mais sustentável para a Amazônia e para o planeta.






































