Avanço da inteligência artificial impulsiona um consumo sem precedentes de água e energia


O custo invisível da inteligência artificial: água e energia para alimentar um futuro digital

 

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A cada interação com uma ferramenta de inteligência artificial, um custo invisível e silencioso é adicionado à conta do planeta. Vinte a trinta perguntas a uma plataforma como o ChatGPT podem evaporar o equivalente a meio litro de água potável. Longe da tela do computador ou do celular, a inteligência artificial não é um conceito abstrato, mas uma entidade física que reside em gigantescos data centers. Esses centros, repletos de servidores, funcionam como o cérebro da IA, processando e armazenando dados em uma escala que exige não apenas vastas quantidades de energia, mas também milhares de litros de água para resfriamento.

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Fonte: E-Abel

Corrida digital colide com a realidade ambiental

É nesse ponto que a corrida digital colide com a realidade ambiental, e o Brasil se vê no centro desse debate. A tentativa do governo de atrair esses gigantes da tecnologia com promessas de redução de impostos acende um alerta sobre os impactos ambientais em um país que enfrenta um cenário climático cada vez mais desafiador.

A dimensão do problema é proporcional ao crescimento da tecnologia. A inteligência artificial, com seus modelos de linguagem e capacidades de processamento, demanda uma infraestrutura robusta. Cada comando enviado a um chatbot, por exemplo, é um pulso de energia que gera calor. Para evitar o superaquecimento dos servidores e garantir que as máquinas funcionem sem falhas, os data centers utilizam sistemas de resfriamento intensivos. A tecnologia principal hoje em dia faz uso de água doce, que circula pelos sistemas para dissipar o calor e, no processo, acaba por evaporar.

Em um estudo feito na Califórnia, pesquisadores se debruçaram sobre a “pegada hídrica” da inteligência artificial. Sem acesso direto aos dados de consumo das empresas, eles estimaram o gasto do GPT-3 com base em seu uso de energia e nas tecnologias de resfriamento. O que eles concluíram é assustador: a cada 20 a 50 perguntas, meio litro de água potável é vaporizado. Pode parecer pouco, mas quando se considera que o ChatGPT tem centenas de milhões de usuários semanais, o volume de água total é colossal.

Em um cenário em que todos os usuários fizessem o mínimo de comandos estipulados no estudo, o consumo de água por semana seria de centenas de milhões de litros. Um volume que seria suficiente para abastecer cidades inteiras por pelo menos um dia, revelando a escala do problema.

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Foto: Arte/g1

O crescimento e a sede da IA

A demanda por recursos não é exclusiva da inteligência artificial. Outras tecnologias digitais também dependem de data centers. No entanto, o avanço meteórico da inteligência artificial elevou o consumo de água a patamares recordes. Gigantes como Google e Microsoft, que operam suas próprias ferramentas de IA, relatam um aumento dramático no uso de água. Em 2023, o Google consumiu mais de 24 bilhões de litros de água, o maior volume desde 2019, antes do lançamento de sua ferramenta Gemini. A Microsoft, por sua vez, declarou ter usado quase 13 bilhões de litros, um número sem precedentes em seus registros recentes. Esses dados comprovam a correlação direta entre o crescimento da IA e o aumento do consumo de recursos hídricos.

O especialista em inteligência artificial Diogo Cortiz esclarece que a exigência computacional dessas ferramentas não se restringe à operação diária. O processo de treinamento dos sistemas, que pode levar meses, consome volumes ainda maiores de água e energia. A cada nova iteração e a cada avanço tecnológico, a sede da IA parece aumentar, levantando uma questão central sobre a sustentabilidade do modelo de negócios das big techs.

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Foto: Arte/g1

A promessa do Brasil e o dilema ambiental

Atento a esse cenário, o governo brasileiro busca atrair as empresas de tecnologia para o país, apresentando o Brasil como uma alternativa competitiva e sustentável. A proposta, discutida em eventos nos Estados Unidos, é instituir a Política Nacional de Data Centers, que prevê isenção de impostos sobre equipamentos importados e serviços. A principal moeda de troca do governo é a matriz energética brasileira, predominantemente hidrelétrica, que seria uma alternativa “limpa” em comparação aos países onde a energia vem de combustíveis fósseis. A narrativa é de que, no Brasil, a tecnologia poderia se desenvolver com menor impacto ambiental.

No entanto, especialistas alertam para os riscos desse plano. O documento ainda não foi publicado, e as discussões parecem ter se limitado às pastas econômicas, sem a participação do Ministério do Meio Ambiente. A preocupação é que a isenção de impostos abra as portas para a instalação desses centros sem as devidas salvaguardas ambientais e estudos de impacto a longo prazo. O Brasil, que enfrentou a pior seca da história em 2024, não pode ignorar os perigos de um aumento exponencial na demanda por água e energia. A instalação de um data center pode estressar bacias hidrográficas e agravar crises hídricas em regiões já vulneráveis, como o Nordeste.

40 milhões de litros de água no data centers por mês

Em Iowa, nos Estados Unidos, um exemplo concreto já ilustra o problema. Em 2022, durante o treinamento de uma das versões do GPT, a Microsoft bombeou mais de 40 milhões de litros de água para seus data centers em um único mês, o que correspondeu a 6% de toda a água consumida no distrito. Essa realidade levanta a pergunta: há segurança hídrica para esse tipo de investimento no Brasil? A vulnerabilidade do país às mudanças climáticas, com secas mais intensas e frequentes, exige uma abordagem mais cautelosa.

A gerente de energia do Instituto Arayara, Anton Schwyter, enfatiza que não é aceitável que a decisão seja movida apenas por interesses econômicos. O risco de causar estresse hídrico em novas regiões ou agravar o cenário em locais já sensíveis é real e iminente. Julia Catão Dias, do Instituto de Defesa de Consumidores Idec, critica a falta de transparência do governo, que impede a participação de especialistas e da sociedade civil no debate sobre um tema de tamanha relevância. Para ela, qualquer política pública nesse sentido deveria ser subsidiada por estudos que atestem a segurança e a viabilidade dos locais de instalação.

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Foto: Arte/g1

O avanço sem limites e a urgência da regulamentação

O dilema se aprofunda quando se observa que as empresas de tecnologia já admitem que parte da água que consomem provém de áreas com estresse hídrico. A Microsoft, por exemplo, revelou em 2023 que 42% da água que utilizou veio de regiões onde a escassez é um problema recorrente. No caso do Google, o percentual foi de 15%. Isso mostra que a busca por locais para instalar data centers não se limita a regiões de abundância hídrica, mas se expande para áreas onde o recurso já é disputado e escasso.

Em Eldorado do Sul, no Rio Grande do Sul, uma empresa já anunciou um investimento bilionário para a instalação de um data center voltado à inteligência artificial. O estado, que enfrenta uma condição de seca extrema em suas bacias hidrográficas, exemplifica a desconexão entre a atração de investimentos e a realidade climática do país. Para Luana Pretto, presidente do Instituto Trata Brasil, é inaceitável discutir a demanda por água da indústria enquanto milhões de brasileiros ainda não têm acesso a saneamento básico.

Urgência de regulamentação

A urgência de regulamentação se torna evidente. Embora as empresas busquem alternativas e prometam soluções, como sistemas de resfriamento mais eficientes e o uso de água industrial, essas propostas ainda estão em fase de estudo e não são a regra. A Agência Internacional de Energia projeta que o consumo global de eletricidade dos data centers pode mais que dobrar até 2030, impulsionado pela inteligência artificial. Esse crescimento desenfreado, no entanto, não é acompanhado por políticas de compensação ou mecanismos de controle eficazes.

Para o engenheiro da computação Rudolf Buhler, as perspectivas de atrair a tecnologia são boas, mas desde que existam exigências técnicas e fiscais para as metas ambientais. Se o governo não atrelar os benefícios a critérios claros como eficiência energética e reaproveitamento de água, o risco é atrair projetos com alto custo ambiental em nome da digitalização. Diogo Cortiz reforça que, enquanto houver recursos disponíveis e as empresas puderem explorá-los sem limites, elas o farão. A solução, segundo ele, não virá apenas da tecnologia, mas da cobrança por políticas públicas e regulamentação que imponham limites e garantam a sustentabilidade do planeta.

Fonte: Globo Comunicação e Participações S.A