Mercúrio em peixes expõe riscos à saúde na Baía de Guanabara


Mercúrio na Baía de Guanabara revela feridas ambientais persistentes

A Baía de Guanabara, um dos estuários mais emblemáticos do Brasil, continua a expor as marcas de décadas de pressão ambiental acumulada. Um estudo conduzido pela Universidade Federal Fluminense (UFF) identificou a presença de mercúrio em peixes consumidos por comunidades que vivem da pesca artesanal, reacendendo o alerta sobre os riscos silenciosos da poluição crônica em ecossistemas costeiros densamente povoados.

Fernando Frazão/Agência Brasil

A pesquisa avaliou não apenas o pescado, mas também a exposição humana ao metal pesado, a partir da análise de amostras de cabelo de pescadores e moradores de áreas como Magé, Itaboraí e a Ilha do Governador, na Zona Norte do Rio de Janeiro. O recorte territorial não é aleatório: trata-se de regiões onde o peixe representa tanto sustento econômico quanto base alimentar cotidiana.

Embora as concentrações de mercúrio encontradas nos peixes estejam dentro dos limites estabelecidos pela legislação brasileira, o estudo aponta um cenário mais complexo quando se observa a exposição contínua das populações que dependem desse alimento. O problema, segundo os pesquisadores, não está apenas no valor isolado da contaminação, mas na frequência e na repetição do consumo de determinadas espécies ao longo do tempo.

O estudo e a dinâmica da contaminação no estuário

A pesquisa foi desenvolvida por Bruno Soares Toledo, sob orientação da professora Eliane Teixeira Mársico, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Higiene Veterinária e Processamento Tecnológico de Produtos de Origem Animal da UFF. Na primeira etapa, os pesquisadores analisaram oito espécies de peixes com diferentes hábitos alimentares, entre elas sardinha, tainha, corvina e robalo.

Os resultados evidenciaram diferenças significativas entre as espécies. Peixes de menor nível na cadeia alimentar, como a sardinha, apresentaram concentrações muito baixas de mercúrio. Já o robalo, um predador, concentrou níveis mais elevados do metal, ainda que abaixo do limite máximo permitido para consumo humano.

Esse padrão reflete um processo conhecido como biomagnificação, no qual contaminantes se acumulam progressivamente ao longo da cadeia alimentar. Em ambientes como a Baía de Guanabara, marcados por intensa atividade industrial, tráfego marítimo e lançamento histórico de efluentes domésticos e industriais, esse mecanismo tende a se intensificar.

A segunda etapa do estudo avançou para a análise de amostras de cabelo humano, método reconhecido internacionalmente para identificar exposição crônica ao mercúrio. Utilizando parâmetros indicados pela Organização das Nações Unidas (ONU), os pesquisadores encontraram casos em que os níveis superaram os limites considerados seguros, indicando que parte dos pescadores está mais exposta ao metal pesado do que a média da população.

captura_de_fios_de_cabelo_dos_pescadores_copy_0 Mercúrio em peixes expõe riscos à saúde na Baía de Guanabara
Foto: Divulgação UFF

SAIBA MAIS: Pesquisadores desenvolvem sistema inovador para reduzir impactos ambientais na Baía de Guanabara

Pesca artesanal, saúde e desigualdade ambiental

A Baía de Guanabara sustenta milhares de famílias que dependem diretamente da pesca artesanal. Estima-se que cerca de 4 mil pescadores estejam vinculados à Associação de Homens e Mulheres do Mar da Baía de Guanabara (Rede AHOMAR), em um território onde vivem aproximadamente 8 milhões de pessoas. Nesse contexto, a contaminação ambiental não é apenas um problema ecológico, mas uma questão de justiça social e de saúde pública.

Parte significativa do pescado capturado nessas regiões é destinada ao consumo das próprias famílias, especialmente espécies de menor valor comercial. Isso significa que os riscos identificados pelo estudo extrapolam o campo teórico e se inserem no cotidiano alimentar dessas comunidades.

Segundo a ONU e a Organização Mundial da Saúde (OMS), a exposição ao mercúrio pode causar efeitos neurológicos graves, como tremores, perda de memória, insônia e fraqueza muscular. Fetos e crianças estão entre os grupos mais vulneráveis, assim como populações que consomem peixe de forma frequente, caso típico de comunidades pesqueiras de subsistência.

Os próprios pescadores relatam perceber mudanças profundas na baía ao longo dos anos, como a redução da oferta de peixes e a diminuição do tamanho das espécies capturadas. Para eles, a poluição é uma realidade visível, ainda que seus efeitos mais perigosos nem sempre sejam perceptíveis a curto prazo.

Ciência como ferramenta de proteção coletiva

Um dos aspectos centrais do estudo é o compromisso dos pesquisadores em devolver os resultados às comunidades envolvidas. A equipe da UFF planeja apresentar os dados de forma acessível, por meio de materiais visuais e explicativos que ficarão disponíveis nas associações de pescadores.

A proposta não é afastar essas populações do consumo de peixe, mas oferecer informações que permitam escolhas mais seguras, como o rodízio entre espécies e o espaçamento entre as refeições com peixes de maior concentração de mercúrio. Trata-se de uma estratégia de redução de riscos, construída a partir do diálogo entre ciência e saberes locais.

Para Eliane Mársico, compartilhar os resultados é parte indissociável do trabalho científico. Ao tornar o conhecimento acessível, a pesquisa cumpre uma função social fundamental, ajudando comunidades vulneráveis a se protegerem em um ambiente marcado por desigualdades históricas e degradação ambiental persistente.

O estudo reforça que a recuperação da Baía de Guanabara não é apenas uma pauta ambiental, mas um imperativo de saúde coletiva. Enquanto a poluição continuar a se acumular em silêncio, seus efeitos seguirão se manifestando nos corpos e na vida de quem depende diretamente desse território para sobreviver.