Micróbio vital dos oceanos pode colapsar com aquecimento global


Os mares guardam um dos organismos mais importantes do planeta: o Prochlorococcus, uma cianobactéria minúscula, mas vital. Invisível a olho nu, ela cobre mais de 75% das águas superficiais do oceano e sustenta a base da cadeia alimentar marinha. É o microrganismo fotossintético mais abundante da Terra, responsável sozinho por cerca de 5% de toda a fotossíntese global, uma contribuição gigantesca para o equilíbrio climático e a vida nos oceanos.

Kathy Newer/University of Washington

Por décadas, os cientistas imaginaram que o Prochlorococcus seria um vencedor no cenário do aquecimento global. Adaptado a águas tropicais pobres em nutrientes, parecia pronto para prosperar em mares cada vez mais quentes. No entanto, uma pesquisa publicada em setembro na revista Nature Microbiology mudou essa percepção. O estudo, liderado por François Ribalet, professor associado de oceanografia da Universidade de Washington, mostra que esse micróbio essencial tem um limite térmico bem mais baixo do que se supunha.

Quando o calor vira ameaça

Segundo os dados, o Prochlorococcus cresce de forma mais eficiente em águas entre 19 e 30 graus Celsius (66 e 86 graus Fahrenheit). Acima disso, sua taxa de divisão celular despenca: a 31 graus (86 °F), a velocidade cai para apenas um terço do observado em temperaturas mais amenas. Modelos climáticos projetam que, nos próximos 75 anos, grandes áreas dos oceanos tropicais e subtropicais ultrapassarão esse limiar.

Isso significa que, em regiões hoje abundantes em Prochlorococcus, haverá uma drástica redução de biomassa. A consequência se espalha por todo o ecossistema: menos carbono fixado, menos alimento para organismos microscópicos, menos suporte para peixes, mamíferos marinhos e, no fim, para a pesca que abastece comunidades humanas.

“Durante muito tempo achávamos que o Prochlorococcus iria se dar bem no futuro, mas não é isso que os dados estão mostrando. Nas áreas mais quentes, ele não está prosperando”, resume Ribalet.

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Esta imagem, capturada por um microscópio eletrônico, mostra células individuais de Prochlorococcus. Cada bolha é um micróbio, medindo apenas 500 nanômetros de diâmetro. Para referência, a largura de um único fio de cabelo humano é de cerca de 100.000 nanômetros. Natalie Kellogg/Universidade de Washington

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Uma década no mar para decifrar um micróbio

Nos últimos dez anos, Ribalet e sua equipe participaram de quase 100 expedições científicas, percorrendo cerca de 240 mil quilômetros e analisando 800 bilhões de células. Boa parte do conhecimento existente vinha de culturas em laboratório, mas os pesquisadores buscaram respostas no próprio oceano. Para isso, usaram um citômetro de fluxo contínuo, o SeaFlow, que dispara lasers através da água para medir células em tempo real, sem necessidade de coleta invasiva.

A análise revelou que a latitude influencia diretamente a taxa de crescimento celular. Após descartar fatores como nutrientes e luz solar, restou a variável mais determinante: a temperatura.

O preço da eficiência evolutiva

O Prochlorococcus sobreviveu milhões de anos em mares quentes e pobres em nutrientes graças a uma estratégia radical: eliminou genes considerados supérfluos e manteve apenas o essencial para viver com pouco. Essa simplicidade foi sua força. Hoje, porém, cobra um preço. Sem os genes necessários para lidar com estresse térmico, não consegue responder ao aquecimento acelerado.

Enquanto isso, outra cianobactéria, o Synechococcus, mostra maior tolerância ao calor. Ela possui genoma menos enxuto, mas exige mais nutrientes. Os pesquisadores acreditam que, com a retração do Prochlorococcus, o Synechococcus pode ocupar parte do espaço ecológico. Contudo, a substituição não é simples: milhões de anos de interações evolutivas moldaram a relação entre o Prochlorococcus e os demais organismos marinhos. Não há garantias de que o mesmo ocorra com seu “concorrente”.

Cenários para o futuro

Os modelos climáticos aplicados no estudo testaram cenários de aquecimento moderado e intenso. Globalmente, os resultados apontam para uma queda de 10% na produtividade do Prochlorococcus no primeiro cenário e de até 37% no segundo. Nos trópicos, a projeção é ainda mais dramática: redução de 17% sob aquecimento moderado e até 51% em caso de altas emissões.

Há também deslocamentos esperados em sua distribuição: a tendência é de retração nas águas equatoriais e expansão em direção aos polos. Esse movimento, no entanto, ameaça os ecossistemas tropicais, onde o micróbio é insubstituível.

Limitações e esperança

Os autores reconhecem que as conclusões têm limites. É possível que existam cepas mais resistentes ao calor que ainda não foram identificadas. Se forem descobertas, podem oferecer uma nova perspectiva para a sobrevivência dessa espécie-chave.

O estudo teve a colaboração de E. Virginia Armbrust, também da Universidade de Washington; Stephanie Dutkiewicz, pesquisadora do MIT Center for Sustainability Science and Strategy; e Erwan Monier, professor da Universidade da Califórnia, Davis e co-diretor do Climate Adaptation Research Center. O financiamento veio da Simons Foundation e de outros parceiros acadêmicos e institucionais.

Apesar das incertezas, o alerta é claro: a sobrevivência do micróbio que pinta de azul as águas tropicais e sustenta a vida marinha está em risco. Se os oceanos continuarem aquecendo no ritmo atual, a estabilidade da base da cadeia alimentar pode ruir, trazendo efeitos em cascata para ecossistemas e sociedades humanas.