Às margens largas e silenciosas do rio Tapajós, adentra-se uma aldeia que mais parece uma porta entre mundos: a Aldeia Vista Alegre do Capixauã, lar da etnia Kumaruara, abre-se ao visitante com rituais ancestrais, trilhas entre árvores medicinais, igarapés cristalinos e uma nova forma de liderança. No centro dessa transformação está Irenilce Batista Sousa, conhecida como Cacica Irenilce, a primeira mulher a assumir o cargo de cacica no seu território — cargo que ocupa há quase uma década, enfrentando preconceitos de gênero e identidade, porém com a confiança da comunidade.

Quando Irenilce assumiu, estava consciente de dois fatos: que talvez não fosse aceita e que, se não tivesse respaldo, logo seria substituída. “Se eu não tivesse fazendo um bom trabalho, eles já tinham me tirado,” disse em entrevista. Essa afirmação expõe algo central: o poder de governança ali não é imposto externamente, mas construído no seio da comunidade, sob lógica coletiva. E é essa lógica que ela agora aplica à gestão de um empreendimento que nasce do território e para o território.
A comunidade Kumaruara há tempos lidava com as contradições de viver entre a floresta e o rio, de sobreviver da mandioca, da pesca e do extrativismo enquanto via suas tradições se diluírem. A partir de um processo de reconquista identitária — investigação das próprias raízes, resgate da língua, da dança do tipiti, do carimbó, do grafismo corporal — emergiu a ideia de transformar o turismo em base de futuro. Com o apoio de organizações como o Projeto Saúde e Alegria e o WWF, a Pousada Uka Surí tornou-se o palco de uma experimentação: acomodar visitantes num redário entre a natureza, promover canoagem em águas calmas, receber os viajantes com farinha recém-torrada, misturando economia, cultura e preservação.

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Esse turismo de base comunitária virou para a aldeia algo mais que renda extra. Tornou-se instrumento de afirmação: mulheres passam a ocupar postos de protagonismo, jovens veem possibilidade de permanecer no território, e a floresta — não como obstáculo, mas como aliada. Canoas, motores, remos, coletes foram conseguidos através de apoio externo, permitindo que a experiência turística se tornasse mais segura, organizada, profissional. Mas a essência permanece: o visitante não chega para dominar, mas para conhecer; a comunidade não cede território, mas compartilha saberes.
A gestão dessa nova face da aldeia exige habilidades que transcendem a cultura tradicional: saber calcular custos, definir preços, distribuir tarefas, orientar visitantes. Como Irenilce relata, “antes, não sabíamos como calcular corretamente os custos. Agora, com essa capacitação, temos mais clareza.” Esse salto de intuição para estruturação profissional é um aspecto que revela a maturidade do empreendimento e sua ambição de permanência.
Mas também surgem dilemas. O equilíbrio entre manter o modo de vida tradicional e desenvolver uma economia de base turística exige escolhas, e a liderança feminina, naquela realidade marcada por machismo e invisibilidade indígena, requer mais que firmeza: requer aliança comunitária, visibilidade e legitimidade. A afirmação de Irenilce — “se eu sou, ninguém vai dizer que eu não sou” — traduz bem essa travessia.
Hoje, a aldeia integra a Rede Floresta Digital e desenvolve oficinas de mídia comunitária, rádio web, produção audiovisual. Essa investida conecta a floresta ao mundo digital, e garante que as vozes do Tapajós sejam ouvidas por além dos igarapés. Jovens aprendem edição de áudio, fotografia, registram sua própria narrativa e assumem a autoria do seu território. Essa articulação, entre tradição e tecnologia, entre rio e rede, constitui o que podemos chamar de “autonomia interligada”.
Se o turismo de base comunitária funciona como porta para o exterior, ele funciona sobretudo como motor interno de transformação: gera renda, sim, mas também autoestima, identidade, possibilidade de escolha e protagonismo. A comunidade Kumaruara convida o mundo — e se convida a si própria — a fazer diferente: viver com a floresta e da floresta, sem abri-mão da dignidade e da inovação.
E a liderança de uma mulher, num contexto onde isso era impensável há poucos anos, revela que esse futuro não é apenas de floresta intocada, mas de floresta dinâmica, liderada por quem nela sempre esteve. “Quem tem que cuidar da Amazônia somos nós. Quem quer a Amazônia de pé, somos nós,” afirma Irenilce. Esse não é um aceno à ajuda externa, mas um convite à parceria com reciprocidade, visão e respeito







































