Há algo de poeticamente justo em ver uma abelha enfrentar um mosquito. Um inseto conhecido por construir, adoçar e fertilizar versus aquele que transmite doenças e interrompe noites de sono. Mas não se trata de fábula.

Inseto úteis contra os nocivos
Um grupo de pesquisadores brasileiros acaba de descobrir que a própolis de uma abelha nativa do Brasil, a mandaçaia, contém uma substância natural capaz de matar as larvas do Aedes aegypti, o vetor da dengue, zika, chikungunya e febre amarela.

A descoberta é resultado de um esforço coletivo, que reuniu cientistas da Universidade de São Paulo, da Universidade de Brasília e de startups do interior paulista. O estudo, publicado na revista Rapid Communications in Mass Spectrometry, apresenta um cenário instigante: uma substância produzida por um animal silvestre, sem ferrão, que vive em colônias tranquilas e discretas, mostra potencial para conter uma epidemia urbana que desafia gestores públicos ano após ano.
Não se trata apenas de ciência de bancada. O projeto integra uma iniciativa do Ministério da Saúde voltada à busca de agentes larvicidas naturais, menos tóxicos que os produtos químicos hoje utilizados no controle do Aedes. A urgência é evidente. O país convive com explosões sazonais de casos de dengue e outras arboviroses, e os métodos tradicionais têm mostrado eficácia limitada, além de impactos ambientais cada vez mais difíceis de justificar.
A química da floresta
A história dessa descoberta começa na própolis, uma substância resinosa coletada por abelhas a partir de plantas para proteger suas colmeias contra invasores, fungos e bactérias. No caso da mandaçaia, o que se produz é chamado de geoprópolis, uma variante que, além das resinas, inclui partículas de solo e argila, resultando numa composição química mais rica e diversa.
Foi nesse material que os pesquisadores encontraram um composto do grupo dos diterpenos, responsável pela ação larvicida observada nos testes. As análises mostraram que, em menos de 48 horas, a substância foi capaz de eliminar todas as larvas expostas. Um desempenho muito superior ao da própolis comum, feita pela abelha-europeia Apis mellifera, cuja ação foi praticamente nula mesmo após 72 horas de exposição.
O professor Norberto Peporine Lopes, coordenador do projeto na Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto, destaca que o resultado não é apenas um achado pontual. Ele integra um esforço maior, vinculado ao Programa Biota da FAPESP, voltado à valoração da biodiversidade brasileira por meio da metabolômica, a ciência que investiga os compostos produzidos por organismos vivos.
Essa abordagem permite uma leitura mais profunda dos ecossistemas: a floresta, nesse contexto, deixa de ser apenas um banco genético e passa a ser reconhecida como um sistema de inteligência química em permanente experimentação. Cada planta, cada animal, carrega em si moléculas que podem ser chaves para problemas que sequer sabemos nomear ainda.
A presença invisível das abelhas
A mandaçaia, protagonista silenciosa dessa história, é uma espécie de abelha sem ferrão nativa do Brasil. Diferente da maioria das espécies domesticadas, ela não oferece risco de picada e pode ser cultivada com relativa facilidade. Seu nome, derivado do tupi, significa “vigia bonita”, e descreve bem o seu papel ecológico. Além de produtora de mel, é uma polinizadora eficiente, essencial para diversos ecossistemas.
Embora existam outras abelhas nativas com potencial semelhante, como a jataí, a borá e a mirim, a geoprópolis da mandaçaia mostrou uma eficácia larvicida incomparável. Um fator decisivo parece estar no tipo de resina coletado por essas abelhas. No caso estudado, as mandaçaias estavam instaladas em uma região de Bandeirantes, no Paraná, onde a presença de plantações de pinus era marcante.
O pinus elliottii, embora exótico no Brasil, é amplamente utilizado na indústria madeireira e na extração de resinas. Os pesquisadores observaram que as mandaçaias usavam a resina desse pinheiro para produzir sua própolis, e que essa matéria-prima, processada pela saliva das abelhas, resultava no diterpeno com efeito larvicida.
Essa combinação entre o comportamento de coleta da abelha e a química vegetal do pinus é um exemplo sutil, mas poderoso, de como processos naturais podem ser convertidos em soluções tecnológicas. E também de como o ambiente molda os organismos e seus produtos.
Da colmeia ao laboratório
O entusiasmo dos pesquisadores não esbarra na romantização. O volume de geoprópolis produzido naturalmente pelas mandaçaias é pequeno demais para uso em larga escala. Mas o fato de a substância ativa estar na resina do pinus, disponível comercialmente, abre espaço para alternativas mais viáveis. Com a ajuda de biorreatores, seria possível reproduzir e até aprimorar o composto larvicida, mimetizando as transformações feitas pelas abelhas.
Esse caminho, embora ainda em estágio inicial, representa uma ponte concreta entre conhecimento tradicional, biodiversidade e inovação tecnológica. O Brasil, frequentemente criticado por negligenciar sua ciência e por tratar a floresta como recurso bruto, tem aqui um exemplo de como é possível converter riqueza biológica em política pública de saúde.
Além do diterpeno da mandaçaia, os pesquisadores também trabalham com outras substâncias promissoras. Um segundo composto larvicida, presente no óleo essencial de uma planta cultivada em grande escala, foi identificado dentro do mesmo projeto coordenado pela professora Laila Salmen Espindola, da Universidade de Brasília. O resultado ainda não foi publicado, mas os testes avançam.
A equipe desenvolveu duas formas de aplicação do novo produto: um pó de ação imediata e um comprimido de liberação lenta que protege a água por até 24 dias. Ambos representam alternativas seguras, eficazes e sustentáveis ao arsenal químico atual.
Ciência como política de saúde
É importante frisar que essa não é uma pesquisa isolada ou fruto de sorte. Ela resulta de anos de investimento em ciência básica, em redes colaborativas entre universidades, centros de pesquisa e pequenas empresas, e de programas de fomento que compreendem a importância de pensar o país a partir da sua biodiversidade.
A pandemia da covid-19 evidenciou brutalmente os limites de depender exclusivamente de soluções importadas. O enfrentamento das doenças tropicais exige uma inteligência científica própria, adaptada aos contextos sociais e ecológicos locais. É nesse sentido que a descoberta da própolis larvicida da mandaçaia ganha valor simbólico e prático.

Ela aponta para um horizonte em que a saúde pública não depende apenas de remédios industrializados, mas de uma compreensão integrada entre ecologia, comportamento animal e química natural. Um país com a biodiversidade do Brasil não pode continuar tratando sua floresta como obstáculo ao progresso. Ela é, ao contrário, uma aliada estratégica no enfrentamento dos desafios mais urgentes.
O futuro não virá de fora
Enquanto o Aedes aegypti continua fazendo vítimas nas periferias urbanas, a resposta pode estar em um inseto minúsculo que trabalha sem alarde nas margens da mata. É uma ironia, mas também uma chance de reconciliação. A ciência, quando encontra caminhos na própria terra, reconfigura as fronteiras do possível.
O trabalho da equipe liderada por Norberto Lopes e Laila Espindola ainda está longe de virar produto de prateleira. Há etapas regulatórias, estudos de impacto e processos industriais pela frente. Mas a trilha está aberta. E mais do que uma molécula promissora, o que se revela é uma metodologia, um jeito de pensar e agir que parte da escuta atenta da natureza.
Talvez essa seja a lição mais duradoura. Em tempos de urgência climática, sanitária e política, aprender com abelhas pode ser mais sensato do que parece. Elas trabalham coletivamente, transformam matéria bruta em proteção e fazem do silêncio um modo de existir. Quem sabe seja exatamente disso que precisamos agora.
Fonte: Agência FAPESP










































