Por que a queima de canaviais ainda é permitida, apesar dos incêndios recorrentes?

Autor: Redação Revista Amazônia

 

Os incêndios que têm devastado áreas rurais em São Paulo, cobrindo cidades com uma densa camada de fumaça e forçando evacuações, trouxeram à tona a prática das queimadas controladas na agricultura, especialmente no cultivo de cana-de-açúcar. Recentemente, mais de 100 mil hectares de plantações de cana foram destruídos pelo fogo, gerando perdas milionárias e reabrindo o debate sobre a permissão dessas queimadas.

A situação ganhou ainda mais destaque após a viralização de um vídeo nas redes sociais, onde funcionários da usina Delta Sucroenergia são vistos incendiando uma plantação de cana. A usina afirmou que a filmagem ocorreu meses antes em Minas Gerais e que a queima seguiu normas legais, garantindo medidas de contenção de incêndios.

Esse tipo de queima é considerado “controlado” e está previsto na legislação brasileira, sendo autorizado principalmente em regiões onde o terreno é irregular e impede o uso de maquinário agrícola. No entanto, tal prática é permitida apenas sob condições climáticas específicas e requer autorização dos órgãos ambientais competentes.

O uso do fogo na agricultura

A queima de canaviais é uma prática regulamentada pelo decreto federal 2.661, de 1998, que define a queima controlada como o uso do fogo para manejo em atividades agrícolas, pastoris ou florestais. No cultivo de cana-de-açúcar, o fogo é utilizado antes da colheita para remover as folhas secas e verdes, facilitando o corte manual e agilizando o processo de transporte para moagem.

Embora a mecanização da colheita tenha avançado, o uso do fogo ainda é comum em regiões de relevo acidentado, como no Nordeste do Brasil, onde apenas cerca de 30% da colheita é mecanizada, conforme explica Gerson Carneiro Leão, presidente do Sindicato dos Cultivadores de Cana-de-Açúcar de Pernambuco (Sindicape). Ele destaca que, em terrenos inclinados, as máquinas de colheita enfrentam dificuldades, e novas soluções tecnológicas estão sendo desenvolvidas para lidar com essa limitação.

Além disso, Leão ressalta que o corte manual, facilitado pelas queimadas, tende a gerar mais empregos e aumentar o rendimento do trabalho, embora haja perdas significativas de mão-de-obra especializada.

A regulamentação e as exceções

Nos estados onde o relevo é predominantemente plano, como São Paulo, a prática da queima controlada já foi proibida em grande parte das áreas de cultivo, com a colheita sendo quase totalmente mecanizada. No entanto, há exceções para pequenas propriedades de até 150 hectares, que continuam autorizadas a utilizar o fogo.

As legislações estaduais variam, e algumas regiões estabelecem restrições rigorosas para a queima, como horários específicos e monitoramento constante. No Estado de Pernambuco, por exemplo, a queima só é permitida em períodos de vento fraco e com aceiros para evitar que o fogo se alastre.

Impactos na saúde e no meio ambiente

Apesar de ser regulamentada, a queima controlada de canaviais tem consequências prejudiciais ao meio ambiente e à saúde pública. A fumaça gerada pela queima libera uma série de gases poluentes, como monóxido de carbono, dióxido de enxofre e partículas que podem agravar doenças respiratórias, como asma e bronquite. Além disso, o fogo afeta a biodiversidade e empobrece o solo ao destruir a matéria orgânica e os microrganismos essenciais para sua saúde.

Em casos extremos, como os incêndios recentes em São Paulo, os danos se tornam ainda mais evidentes. O ar poluído compromete a qualidade de vida da população, especialmente das pessoas que vivem nas proximidades dos canaviais, e a fuligem pode causar irritações nos olhos, nariz e garganta.

De acordo com Maria Vera Cruz, pneumologista do Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual de São Paulo (Iamspe), a exposição prolongada à fumaça pode desencadear inflamações e problemas de saúde crônicos. “O ideal é que as pessoas evitem ao máximo sair de casa nesses dias ou usem máscaras para amenizar os efeitos da poluição”, orienta a especialista.

O futuro da queima controlada

Apesar dos impactos negativos, a queima de canaviais continua sendo uma prática comum em determinadas regiões devido a limitações tecnológicas e econômicas. Entretanto, há esforços em andamento para desenvolver alternativas, como máquinas que possam operar em terrenos mais inclinados, o que pode reduzir a dependência do fogo.

Enquanto isso, o debate sobre o fim da queima controlada e a adoção de práticas agrícolas mais sustentáveis segue ganhando força, à medida que os incêndios se tornam cada vez mais frequentes e intensos. A pressão sobre produtores e órgãos reguladores deve aumentar nos próximos anos, com a crescente conscientização dos impactos ambientais e de saúde pública associados à prática.


Edição atual da Revista Amazônia

Assine nossa newsletter diária