A transição para fontes renováveis de energia tem sido apresentada como a grande saída para enfrentar a crise climática. No entanto, um relatório recente da Oxfam Brasil revela que esse processo corre o risco de reproduzir desigualdades históricas entre países ricos e pobres, em vez de superá-las. O documento, intitulado Transição Injusta: Resgatando o Futuro Energético do Colonialismo Climático, analisa seis décadas de consumo energético global e denuncia a persistência de um padrão que concentra benefícios no Norte Global e impactos no Sul Global.

Um consumo marcado pelo excesso
Segundo os dados reunidos, os países mais ricos consumiram, nos últimos 60 anos, 3.300 petawatts-hora além do necessário para suprir as necessidades básicas de energia. O estudo adota como referência o conceito de Mínimo de Energia Moderna (MEM), estimado em 1.000 quilowatts-hora por pessoa ao ano, proposto pela Fundação Rockefeller e pelo Energy for Growth Hub. Esse parâmetro é mais ambicioso que o definido pelas Nações Unidas para garantir acesso universal à energia até 2030.
Esse “excedente” teria sido suficiente para suprir as necessidades energéticas básicas de toda a população mundial por duas décadas. A conclusão é clara: a abundância energética do Norte Global foi construída às custas de um desequilíbrio que mantém milhões de pessoas no Sul Global em situação de pobreza energética.

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O caso brasileiro
O Censo 2022, conduzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontou que 99,8% dos domicílios no Brasil têm acesso à eletricidade. Ainda assim, cerca de 400 mil brasileiros vivem sem energia elétrica, um número pequeno em termos percentuais, mas significativo quando se considera a desigualdade regional e social.
Para Viviana Santiago, diretora-executiva da Oxfam Brasil, o problema é estrutural: “Estamos fazendo uma transição que repete padrões coloniais, em vez de aprender com os erros do passado. O risco é reforçar a pobreza energética e ampliar desigualdades”.
Recursos no Sul, investimentos no Norte
Outro ponto destacado pelo relatório é a distribuição desigual de investimentos em renováveis. Países do Sul Global detêm cerca de 70% das reservas de minerais críticos para a transição energética — lítio, cobalto, níquel, entre outros —, mas recebem apenas uma fração dos investimentos. Em 2024, a América Latina recebeu 3% do total, enquanto o Sudeste Asiático, a África e o Oriente Médio receberam apenas 2% cada.
Em contraste, o Norte Global concentrou 46% dos investimentos, e a China sozinha atraiu 29%. Esse cenário se agrava pelo fato de a África Subsaariana concentrar 85% da população mundial sem acesso à eletricidade, mas continuar à margem dos fluxos financeiros necessários para mudar essa realidade.
Territórios em risco
A corrida por minerais essenciais ameaça vastas áreas de comunidades tradicionais. O relatório estima que 22,7 milhões de km² de terras indígenas reconhecidas no mundo estão sob risco de atividades industriais relacionadas à mineração para a transição energética. Essa área equivale à soma do território do Brasil, dos Estados Unidos e da Índia.
A ameaça não é apenas ambiental, mas também cultural e social, já que populações que historicamente preservaram ecossistemas podem ser deslocadas ou sofrer impactos diretos em seus modos de vida.
O chamado por justiça energética
O estudo insiste na aplicação do princípio das responsabilidades compartilhadas, mas diferenciadas. Ou seja, embora a transição energética seja uma necessidade global, países e empresas que historicamente mais consumiram energia fóssil e emitiram gases de efeito estufa devem assumir maior responsabilidade na preservação dos recursos e no financiamento da mudança.
As recomendações incluem reformas no sistema financeiro global, governança energética mais transparente, salvaguardas para comunidades tradicionais e fortalecimento do multilateralismo. O objetivo é garantir que a transição não seja apenas tecnológica, mas também socialmente justa.
Entre o progresso e o retrocesso
O debate vai além de estatísticas: trata-se de repensar os fundamentos da economia global. Sem uma redistribuição dos investimentos e sem mecanismos que protejam os mais vulneráveis, a transição energética corre o risco de aprofundar o que deveria combater a exclusão e a desigualdade.
Como conclui Viviana Santiago, “o desafio é fazer pressão para que governos e empresas construam uma transição que beneficie a todos, não apenas os mais ricos”. Em outras palavras, o futuro da energia não pode repetir o passado colonial, precisa iluminar o caminho da justiça climática.


































