Um novo olhar para prever deslizamentos: a matemática como aliada


O avanço das mudanças climáticas e a intensificação de eventos extremos têm forçado cientistas a buscar métodos mais precisos para antecipar desastres. No litoral norte paulista, onde as encostas íngremes encontram comunidades vulneráveis, a ciência tenta decifrar sinais que precedem o colapso da terra. Um desses esforços acaba de ganhar força: pesquisadores do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo (ICMC-USP) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) desenvolveram uma estratégia estatística capaz de melhorar a previsão de deslizamentos provocados por chuvas intensas.

imagem: Defesa Civil//Wikimedia Commons

O método foi testado a partir do trágico episódio de fevereiro de 2023, quando tempestades devastaram bairros de São Sebastião, no litoral norte de São Paulo. A análise, publicada na revista Scientific Reports, indica que essa abordagem, chamada AHP Gaussiano, aumenta a precisão ao classificar áreas segundo seu nível de risco, permitindo respostas mais ágeis e melhor planejamento urbano em territórios vulneráveis.

O desafio de pesar cada fator do desastre

A avaliação de suscetibilidade a deslizamentos costuma partir do cruzamento de numerosos fatores: características do terreno, presença de rios e estradas, alterações na cobertura vegetal, entre outros. Tradicionalmente, esse tipo de análise depende do método AHP, sigla para Processo de Hierarquia Analítica. Nele, cada variável é comparada com as demais, e especialistas atribuem pesos relativos que ajudam a formar o mapa de risco.

O AHP Gaussiano, no entanto, substitui essa etapa subjetiva por um procedimento estatístico que usa a distribuição normal (ou curva de Gauss) para calcular automaticamente o peso de cada variável. Segundo Rômulo Marques-Carvalho, doutorando do ICMC-USP e primeiro autor do estudo, essa substituição elimina ambiguidades, mantém o conjunto de fatores e torna o processo mais alinhado ao comportamento real dos deslizamentos observados no território.

A pesquisadora Cláudia Maria de Almeida, do Inpe, explica que o uso da distribuição gaussiana permite identificar a dispersão e a média dos dados de forma objetiva. Essa abordagem resulta em pesos mais consistentes e adaptados às condições específicas da área estudada, sem depender da percepção individual de especialistas.

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Foto: Roosewelt Pinheiro/ABr

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São Sebastião como laboratório natural

O novo método foi validado com base em um inventário detalhado das áreas atingidas em São Sebastião. Os pesquisadores usaram imagens aéreas de alta resolução, complementadas por registros do Google Earth e das plataformas PlanetScope. Foram identificados quase mil pontos de coroa, locais onde os deslizamentos se iniciam, e mais de mil polígonos de cicatriz, que demarcam as áreas afetadas.

Esse conjunto rico de informações permitiu comparar diretamente os dois métodos. O AHP tradicional classificou 23,52% da área como de suscetibilidade muito alta, enquanto o AHP Gaussiano elevou esse número para 26,31%, aproximando-se melhor da extensão real observada após as chuvas.

Além das diferenças percentuais, os critérios considerados mais determinantes também mudam entre os dois métodos. No AHP clássico, predominam a inclinação e a posição das encostas. Já no AHP Gaussiano, aparecem com mais força a geomorfologia e a distância em relação a rios e estradas, evidenciando o papel das intervenções humanas na instabilidade do terreno.

Um método simples que pode salvar vidas

Além de melhorar a previsão de deslizamentos, o método tem potencial para se tornar uma ferramenta de monitoramento de outros riscos ambientais, como incêndios, desertificação ou rebaixamento de solo, segundo André Ferreira de Carvalho, orientador do estudo. Em um cenário de intensificação de eventos extremos, essa capacidade de antecipação se torna ainda mais urgente.

O mais promissor, porém, é sua aplicabilidade. Para utilizá-lo, um município precisaria apenas de dados geoespaciais básicos e de um computador comum com o software livre QGIS. Isso democratiza o acesso a um instrumento técnico que pode fortalecer a prevenção de desastres, especialmente em cidades que enfrentam limitações financeiras e estruturais.

O estudo contou com apoio da FAPESP em três projetos de pesquisa. Seu impacto, no entanto, pode ultrapassar os limites da academia: ao tornar a análise de risco mais objetiva e acessível, ele contribui para salvar vidas, orientar políticas públicas e preparar comunidades diante de um futuro climático cada vez mais imprevisível.