Xingu Revela Segredo Ancestral de Plantio que Aumenta a Diversidade da Mandioca

No coração do Alto Xingu, em uma roça de mandioca na aldeia Ulupuwene, no Mato Grosso, um ancião do povo Waurá pratica um método de cultivo que intriga e inspira. Com estacas retiradas de diferentes variedades de mandioca, espetadas lado a lado na terra, ele estimula o cruzamento entre as plantas. Essa técnica ancestral, que faz brotar folhas e raízes em proximidade, leva à produção de sementes que dão origem a novas variedades da planta. O resultado é um enriquecimento genético vital, um contraponto ao empobrecimento que costuma acompanhar as plantas clonadas, conforme revelou um estudo publicado em março na revista Science. É uma lição valiosa da sabedoria indígena que ecoa nos corredores da ciência moderna.
A jornada milenar da mandioca
A mandioca, pilar da alimentação de diversas culturas, foi domesticada por povos indígenas há cerca de seis mil anos. Sua origem, segundo o etnobiólogo Fábio Oliveira Freitas, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, situa se na borda sul da Amazônia, em uma região que hoje corresponde aos estados de Rondônia e Mato Grosso. A partir de então, essa planta versátil se tornou tão central na dieta que sua difusão se deu, muito antes do período colonial, por meio da troca de estacas (partes do caule) entre comunidades vizinhas. Esse intercâmbio ancestral espalhou a mandioca desde o sul dos Estados Unidos até a porção meridional da América do Sul.

Os pesquisadores chegaram a essa conclusão a partir de uma minuciosa análise genética. Eles examinaram o genoma de 282 amostras de mandioca domesticada (Manihot esculenta) e selvagem (Manihot flabellifolia), provenientes de coleções vivas de instituições de pesquisa, roças tradicionais, além de DNA extraído de herbários e artefatos arqueológicos. Somando a isso dados genômicos de 291 amostras de estudos prévios, o total de genomas analisados atingiu a marca de 573, conferindo uma robustez impressionante aos resultados.
“Muitos agricultores tradicionais, indígenas ou não, identificam as plantas que brotam de sementes e as deixam crescer”, relata Freitas. Se essas novas plantas exibirem qualidades desejadas, como um tamanho maior da raiz tuberosa ou um teor mais elevado de amido, elas passam a ser utilizadas como fonte de estacas, que por sua vez geram clones idênticos à planta mãe. Segundo o pesquisador, o arbusto também pode cruzar com espécies selvagens que vivem nas proximidades das roças, o que contribui ainda mais para a variabilidade genética da planta.
A clonagem e a diversidade perdida
O biólogo britânico Robin Allaby, da Universidade de Warwick, no Reino Unido, e um dos autores do artigo, levanta um ponto crucial: “A clonagem fez com que todos os pés de mandioca das Américas tenham os mesmos marcadores genéticos de parentesco, como se fossem irmãos”. Em conversa com a Pesquisa FAPESP, ele ressaltou que esse padrão difere de culturas como o milho, que naturalmente formam linhagens distintas. Essa uniformidade genética, embora prática para o cultivo em larga escala, pode tornar a cultura mais vulnerável a pragas e doenças, ressaltando a importância das práticas de diversificação.
O etnobiólogo Nivaldo Peroni, da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC, que não participou do estudo, avalia que o trabalho faz uma análise genética abrangente da mandioca, confirmando padrões genéticos já observados em estudos mais restritos. Contudo, ele sugere que o artigo “poderia ter ressaltado com mais ênfase a importância das comunidades tradicionais não indígenas na geração de diversidade, não apenas na Amazônia, mas em outros lugares do Brasil e das Américas”. Essa observação de Peroni sublinha a riqueza do conhecimento empírico e das práticas de manejo de diversas comunidades que contribuem para a biodiversidade agrícola.
Segundo Peroni, existem mais de sete mil variedades de mandioca, criadas por comunidades com preferências próprias na seleção das plantas. Ele tem se dedicado a estudar a origem e a circulação dessas variedades no contexto das comunidades tradicionais brasileiras, e destaca, por exemplo, que agricultores de origem açoriana que vivem na costa atlântica do centro sul do país, como em Santa Catarina, aprenderam a plantar mandioca com os povos indígenas locais.
“No Sul predominam variedades extremamente brancas, refletindo o desejo de produzir algo parecido com a farinha de trigo da Europa”, acrescenta Peroni, ilustrando como fatores culturais e históricos moldam a diversidade das culturas. No litoral do estado de São Paulo, ele identificou mais de 50 variedades no município de Cananéia e mais de 30 em Ubatuba, cada uma com características próprias. Muitas dessas variedades surgiram a partir da brotação de sementes em roças e quintais de comunidades caiçaras, evidenciando que a geração de diversidade não se restringe a métodos formais de melhoramento.
Por ser um alimento nutritivo, de fácil reprodução e transporte, a mandioca se tornou um dos principais itens da dieta indígena e, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura FAO, faz parte da alimentação de um bilhão de pessoas em todo o mundo. Sua versatilidade e adaptabilidade a diferentes solos e climas a consolidam como um alimento estratégico para a segurança alimentar global.
A “Casa de Kukurro” e o saber Waurá
Freitas e Allaby realizaram diversas visitas à aldeia Ulupuwene entre 2018 e 2023. O objetivo era investigar o cultivo tradicional da mandioca, coletar amostras das variedades e entrevistar os moradores. “É uma técnica única, dominada por poucas famílias”, relata Freitas, que já estuda a agricultura dos Waurá desde 1997, acumulando décadas de experiência e profundo respeito pela cultura local.
Depois de preparar a roça, os indígenas Waurá formam montes de terra fofa para facilitar a colheita do tubérculo. Em seguida, espetam ramos que representam elementos da rica lenda que cerca a produção da mandioca. O conjunto de estacas, eles chamam de Casa de Kukurro, em referência ao deus representado pela lagarta que se alimenta das folhas da mandioca. Na mitologia Waurá, o crescimento da planta seria fortalecido pelos cantos rituais dedicados a Kukurro. As sementes formadas por essa mistura de plantas são uma fonte crucial de variedade genética e geralmente permanecem dormentes até que o fogo, utilizado para limpar o terreno antes do plantio, estimule sua germinação no ano seguinte. Esse ciclo demonstra uma profunda compreensão dos processos naturais e uma interação harmoniosa com o ambiente.
“As mulheres desempenham um papel crucial nesse processo”, ressalta a bióloga Carolina Levis, da UFSC, que não participou do estudo. “Elas costumam ser as principais responsáveis por cuidar das roças. São curiosas e deixam crescer as plantas novas, observando suas características.” A observação atenta e o cuidado das mulheres indígenas são, portanto, elementos fundamentais para a seleção e manutenção da diversidade da mandioca.
“Os Waurá são bastante seletivos”, acrescenta Freitas. “Escolheram quatro variedades originadas por sementes no período de nossas visitas, mas descartaram todas por avaliar que não tinham características novas.” Esse rigor na seleção é o que garante a qualidade e a adaptação das variedades ao longo do tempo. Se uma planta é aprovada, eles a batizam e a incorporam à coleção viva da aldeia, um verdadeiro banco genético a céu aberto, mantido pela comunidade.
O vídeo Casa de Kukurro, produzido pela Embrapa em 2019 e disponível no YouTube, oferece um vislumbre fascinante do ritual que acompanha o plantio. Os Waurá não se preocupam com as lagartas que comem as folhas da mandioca; na mitologia da aldeia, é Kukurro que se alimenta e, ao fazê-lo, cuida das plantas. As mudas que nascem de sementes são chamadas kukurromalacati e são poeticamente consideradas “plantas que caem do céu”, ressaltando a reverência e a conexão espiritual com a natureza.
Mandioca brava e a segurança alimentar
“Identificamos 19 variedades de mandioca brava em Ulupuwene”, relata Allaby. Segundo os pesquisadores, ao contrário das variedades mais conhecidas como aipim, macaxeira ou mandioca doce, esse tipo de tubérculo pode ser letal se não for processado adequadamente para a eliminação do ácido cianídrico, que possui efeito tóxico. “É preciso descascar a raiz, ralar e prensar a polpa, ferver para o ácido cianídrico evaporar e pôr o polvilho ao sol para secar”, detalha Freitas, descrevendo o complexo e vital processo de preparo. O polvilho resultante é então utilizado para fazer biju, o principal item da alimentação Waurá, ao lado do peixe. Esse conhecimento tradicional de processamento é um exemplo da profunda sabedoria dos povos indígenas na manipulação de recursos naturais.
A circulação de variedades de mandioca entre as comunidades indígenas é outro aspecto fascinante. Quando se casam, as mulheres Waurá geralmente levam a coleção de plantas de sua família para a casa do marido, e continuam a trocar plantas quando visitam seus parentes. “O casamento pode ser interétnico e envolver grandes distâncias, aumentando a circulação de estacas”, acrescenta Levis. Essa prática social não é apenas culturalmente rica, mas também um mecanismo eficaz de dispersão genética e de manutenção da biodiversidade.
“O estudo mostra o quão importante é a agricultura de pequena escala para a segurança alimentar”, afirma Allaby. Ele compara a situação da mandioca com a da banana no Brasil: das 20 variedades existentes, apenas a nanica, que sofre de deterioração genética e pode desaparecer em décadas, resiste ao transporte marítimo para a Europa. Essa vulnerabilidade da banana contrasta com a riqueza de diversidade da mandioca mantida pelos indígenas. “Os indígenas conhecem muito mais sobre a lavoura da mandioca do que nós”, reconhece Allaby, um cientista de ponta, evidenciando a humildade e a abertura para o aprendizado com o conhecimento tradicional. Segundo ele, a “Casa de Kukurro” é uma técnica que pode ajudar a rejuvenescer geneticamente a diversidade da mandioca e de outras plantas, representando um exemplo marcante de como a ciência acadêmica tem muito a ganhar no intercâmbio com a ciência dos povos indígenas e tradicionais. Essa colaboração não é apenas benéfica, mas essencial para construir um futuro mais sustentável e resiliente, onde o respeito aos saberes ancestrais se une ao rigor da pesquisa científica.
Fonte: Pesquisa FAPESP














































