O agronegócio brasileiro, motor das exportações e protagonista da imagem do país no exterior, vive um confronto aberto com o governo federal. O motivo é o Plano Agricultura e Pecuária, divulgado há pouco mais de um mês, que detalha como o setor terá de contribuir para que o Brasil cumpra suas metas de descarbonização assumidas junto à ONU, as chamadas NDCs (Contribuições Nacionalmente Determinadas).

A reação foi imediata e intensa. Entidades do setor rural, técnicos e consultores afirmam que o documento impõe ao campo um ônus desproporcional, arranhando a competitividade internacional das commodities brasileiras. Alguns chegaram a classificar a proposta de “autossabotagem”, por abrir brechas para que países concorrentes justifiquem barreiras comerciais sob o argumento ambiental.
O incômodo é tamanho que até nomes historicamente alinhados com a agenda climática no agro se juntaram ao coro das críticas. “Jamais pensei que estaria do mesmo lado de algumas das vozes mais conservadoras do setor”, confidenciou à reportagem um consultor que pediu anonimato para falar abertamente.
Como se chegou a esse impasse
A raiz da crise está na forma como o governo decidiu organizar internamente as emissões. Pelo padrão do Acordo de Paris, os gases de efeito estufa são contabilizados em cinco grandes blocos: agricultura, energia, processos industriais, resíduos e mudança do uso da terra. Nesse último entram todas as emissões decorrentes do desmatamento.
No entanto, no desenho do Plano Clima brasileiro, optou-se por separar esse item em duas partes. O desmatamento em terras públicas foi alocado no Plano de Conservação da Natureza. Já a perda de vegetação nativa em áreas privadas passou a fazer parte do Plano de Agricultura e Pecuária.
O governo argumenta que a divisão é lógica. “Ele precisa estar organizado conforme as responsabilidades e quem tem os instrumentos na mão”, explicou Aloisio Melo, secretário nacional de Mudança do Clima. A ideia é deixar claro quais ministérios e órgãos públicos terão de agir em cada frente.
Para o setor, no entanto, essa escolha criou um desequilíbrio: o agronegócio ficou com a conta do desmatamento privado, sem receber reconhecimento proporcional pelas práticas que removem carbono da atmosfera, como sistemas de integração lavoura-pecuária-floresta, recuperação de pastagens e preservação de áreas nativas.
O peso dos números
Os dados do inventário nacional deixam clara a magnitude do desafio. Em 2023, a agropecuária brasileira lançou 622 milhões de toneladas de CO2 equivalente na atmosfera. O número engloba o metano produzido pelo gado, o uso de fertilizantes, os dejetos animais e a decomposição de matéria orgânica.
Com a adição do desmatamento em propriedades privadas, o setor passaria a responder por mais 813 milhões de toneladas de CO2 equivalente. E ainda entrariam 21 milhões de toneladas ligadas ao consumo de combustíveis fósseis.
Nesse arranjo, caberia ao campo reduzir suas emissões em 36% até 2030 e entre 50% e 54% até 2035. Para efeito de comparação, se fosse um país, o agro brasileiro estaria entre os dez maiores emissores de gases de efeito estufa do planeta.
Ônus sem bônus
Na visão de especialistas e representantes do setor, ao assumir o desmatamento privado o agronegócio deveria também poder contabilizar o “bônus” de suas contribuições positivas, como o sequestro de carbono no solo ou em áreas preservadas. Hoje, a versão oficial do inventário nacional não reflete com precisão esse balanço.
“Na forma atual, o único jeito de atingir a meta indicada é reduzindo o desmatamento”, resumiu uma das fontes ouvidas. A consequência, segundo elas, é ignorar todo o potencial de mitigação da agropecuária por meio de tecnologias sustentáveis já em uso.
Essa lacuna é vista como uma das falhas mais graves do plano. Sem detalhamento sobre como as remoções de carbono serão medidas e creditadas, o documento dá a impressão de que a única responsabilidade do setor é cortar emissões, sem considerar sua capacidade de gerar saldos positivos.

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Lobby intenso e risco político
Nos bastidores, a pressão por mudanças tem sido forte. Apenas no plano do agro, o governo recebeu mais de 400 contribuições durante a consulta pública. Agora, técnicos analisam quais sugestões serão incorporadas. O cronograma oficial prevê que a versão final seja aprovada pelos ministérios ainda em outubro, antes do início da COP30 em Belém.
Se isso não acontecer, o Brasil pode chegar ao maior evento climático do planeta com uma mensagem dividida. “Vamos nos apresentar rachados entre agricultura e desmatamento”, disse um representante do setor. Juntas, essas duas áreas respondem por 72% das emissões nacionais, segundo o SEEG (Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa).
A crise chegou ao ponto de o ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues, escolhido como enviado especial da COP30 para representar o agro, ameaçar deixar o cargo caso o plano seja aprovado sem alterações.
As próximas etapas
Do lado do governo, a orientação é não recuar no cronograma. A mensagem oficial é que o plano segue sendo discutido, mas não será engavetado. Aloisio Melo e Roberto Schaeffer, da COPPE/UFRJ, responsável pelo modelo matemático que embasa as metas, defendem que o desenho atual é tecnicamente sólido e reflete a necessidade de clareza sobre as responsabilidades de cada setor.
No entanto, até aliados reconhecem que falta calibrar melhor a forma de registrar as remoções de carbono e dar garantias ao setor produtivo de que seus esforços em práticas sustentáveis não serão desprezados.
Enquanto isso, a COP30 se aproxima. O Brasil quer usar a conferência em Belém para mostrar ao mundo uma narrativa de liderança climática. Mas, se não houver consenso interno, corre o risco de ver o evento marcado por um racha entre governo e agronegócio – justamente no momento em que o país tenta se posicionar como potência agroambiental.





































