Da floresta à renda: a bioeconomia que nasce das mãos da juventude ribeirinha


A Amazônia tem sido, ao longo das últimas décadas, um laboratório vivo para experiências que combinam preservação ambiental, geração de renda e fortalecimento comunitário. Mas alguns projetos se destacam por ir além dos modelos tradicionais de sustentabilidade e tocar num ponto central: a autonomia dos povos da floresta. É o caso da capacitação em incensaria artesanal realizada na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Uatumã — a RDS do Uatumã — iniciativa que integra o programa Engajamento da Juventude no Uso Sustentável de Recursos Naturais na Amazônia, com liderança do psicoaromaterapeuta, artesão e perfumista botânico Roger Consoli.

Foto: Roger Consoli

Mais do que ensinar uma técnica, o projeto forma jovens ribeirinhos para transformar resíduos florestais em produtos de alto valor agregado, criando uma cadeia de bioeconomia que nasce dentro da própria floresta e retorna a ela em forma de renda, regeneração e protagonismo.

Onde tudo começou

Durante uma viagem à Amazônia, Consoli encontrou duas lideranças femininas que mudariam o rumo de seu trabalho: Dona Cleide, guardiã de quelônios, e Dona Elisângela, ex-professora e voz ativa da comunidade. Ambas expressaram um desejo simples e potente: aprender a arte da incensaria para multiplicar conhecimento e ampliar oportunidades na região.

O encontro despertou uma decisão: levar seu saber artesanal para dentro das comunidades e transformá-lo em ferramenta concreta de autonomia econômica. Pouco tempo depois, veio o convite do IDESAM para consolidar o projeto oficialmente. Em julho de 2025, a formação teve início com cerca de 40 participantes, a maioria jovens e adolescentes de seis comunidades espalhadas pela RDS do Uatumã, área que ultrapassa 424 mil hectares de floresta preservada.

Sustentabilidade como fundamento

A espinha dorsal do projeto é o uso 100% de matérias-primas locais. Não há insumos externos, nem processos que dependam de extração predatória. Tudo é pensado para valorizar o que a floresta oferece em abundância — e sempre dentro dos limites que ela pode suportar.

A Miniusina de Óleos Essenciais e a Marcenaria Comunitária, estruturas fundamentais no processo, trabalham com manejo sustentável. A marcenaria opera sob certificação FSC, enquanto a miniusina avança na implementação de um sistema completo de rastreabilidade, garantindo que cada gota de oleoresina ou breu branco tenha origem responsável.

Além da técnica, Consoli decidiu ampliar o escopo e formar os jovens em noções de custo, precificação e organização produtiva. Essa escolha, não prevista inicialmente, mostrou-se determinante para a sustentabilidade econômica da iniciativa. Mais do que produzir incensos, os participantes aprenderam a estruturar um negócio.

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Foto: Roger Consoli

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Regeneração: quando o impacto vai além da sustentabilidade

O projeto não apenas evita danos — ele devolve vida a sistemas ecológicos e sociais. É a lógica da regeneração, que orienta práticas inovadoras e culturalmente enraizadas.

Uma das soluções mais emblemáticas é a economia circular aplicada aos resíduos. O breu branco que iria para o descarte na miniusina vira insumo para incensos. A serragem acumulada na marcenaria ganha forma e propósito. Nada se perde — tudo retorna ao ciclo produtivo.

Outro exemplo é a substituição criativa do bambu, ausente na região. Consoli desenvolveu uma vareta de incenso feita da tala das folhas mortas da palmeira bacaba. É um gesto simples, mas que revela uma mentalidade voltada para o respeito profundo à floresta: usar apenas o que ela oferece espontaneamente.

Há ainda um componente cultural essencial. O projeto resgata saberes ancestrais e os reinventa em novos produtos. O curandeiro Orimar Sicsu, por exemplo, adaptou uma receita tradicional — o morrão — para um incenso terapêutico. Ali onde muitos veem apenas plantas, ele enxerga memória, espiritualidade e cura.

A bioeconomia que chega ao mercado

Os resultados não demoraram. Menos de um mês após a conclusão do segundo módulo da capacitação, um grupo de quatro jovens participou do 12º Simpósio Brasileiro de Óleos Essenciais (SBOE), em Manaus, comercializando 40 caixas de incensos a R$ 90 cada. Toda a receita foi destinada à Associação Agroextrativista da RDS do Uatumã (AACRDSU).

Seis comunidades envolvidas, meses de trabalho e, finalmente, a autonomia transformada em renda.

O impacto também é individual: Orimar Sicsu começou a produzir seu próprio incenso terapêutico, vendido a R$ 20, reforçando a autonomia como o maior retorno da capacitação.

A floresta como parceira

Para Consoli, o sentido da iniciativa vai muito além da técnica. Ele resume: criar incensos naturais é gerar impacto real, fortalecer comunidades e manter a floresta viva. Bioeconomia, cultura e sustentabilidade se entrelaçam numa mesma narrativa — a da Amazônia que, quando valorizada nos seus próprios termos, garante renda, dignidade e regeneração.

A iniciativa mostra que a juventude ribeirinha não é apenas beneficiária. É protagonista de um novo capítulo da economia amazônica — um capítulo que surge do respeito à floresta e se expande pelas mãos de quem vive dentro dela.