Invisibilidades e poder na agenda climática da COP30


A COP30, realizada em Belém, tem sido apresentada como um marco climático global, um encontro técnico destinado a orientar políticas e revisar compromissos. Mas, por trás das negociações formais e das frases cuidadosamente calibradas da diplomacia, há um debate que atravessa séculos e que revela quem, de fato, aparece quando o mundo decide seu futuro: a presença de afrodescendentes nos documentos oficiais do regime do clima. A discussão, embora pareça semântica, é profundamente política. Não trata apenas de categorias; trata de reconhecer quem a crise climática atinge com mais força e quem tem sido sistematicamente apagado das respostas internacionais.

Foto: Gabriel Dantas/Divulgação

A ausência de afrodescendentes nos principais textos climáticos é um sintoma de desigualdades históricas que persistem mesmo em um espaço multilateral voltado, em teoria, para a construção de soluções universais. Como destacam pesquisadoras e articuladoras do movimento negro brasileiro, palavras importam porque moldam políticas, e políticas definem quem vive, quem perde, quem se adapta e quem permanece exposto. Ignorar essa dimensão na Conferência não é neutralidade; é a continuação de uma longa linha de omissões.

O Brasil, que recentemente liderou na Cúpula dos Líderes em Belém a declaração contra o racismo ambiental, tornou-se referência simbólica na agenda. Mas simbolismo só se sustenta quando encontra terreno político sólido. Se o país deseja ocupar a posição de liderança que reivindica, precisa assegurar que esse compromisso apareça nas decisões e nos textos em negociação na COP30, especialmente naqueles que tratam de adaptação, gênero e transição justa. Ser anfitrião da Conferência não significa apenas oferecer infraestrutura; significa assumir responsabilidade diante da maior população afrodescendente fora do continente africano.

Os números mostram que essa disputa não começou ontem. Desde 1992, mais de cem documentos internacionais sobre clima foram analisados. Apenas uma fração mínima menciona afrodescendentes, e quase todas as referências aparecem em textos sem obrigatoriedade legal. A mensagem implícita é devastadora: reconhece-se a existência do racismo ambiental, mas evita-se qualquer tipo de compromisso estruturado para enfrentá-lo. A COP30, ao ocorrer justamente no início da Segunda Década Internacional para Afrodescendentes (2025–2035), tem a chance histórica de romper essa tendência — ou de reiterar o silêncio institucionalizado.

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Imagem: Rogério Cassimiro/ MMA

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O alerta feito pelo Fórum Permanente das Nações Unidas para Afrodescendentes, durante a própria conferência, foi direto: não haverá justiça climática sem abordar os legados de escravidão e colonialismo que ainda hoje moldam desigualdades territoriais, econômicas e sociais. Não haverá transição justa se comunidades afrodescendentes continuarem fora das mesas onde decisões são tomadas. Esse argumento não nasce de reivindicação ideológica, mas de fatos repetidos em diferentes geografias — do Caribe à América Latina, do Brasil às diásporas africanas no Oriente Médio e na Europa.

Parte essencial desse debate passa pelo reconhecimento do termo People of African descent / Afrodescendentes, adotado internacionalmente desde a III Conferência Mundial contra o Racismo, em Durban (2001). Ali, consolidou-se uma definição capaz de abranger tanto descendentes de africanos escravizados nos diversos sistemas de tráfico — transatlântico, mediterrâneo e subsaariano — quanto populações africanas e seus descendentes que migraram mais recentemente. A escolha do termo não é meramente linguística. Ele representa um marco jurídico e político que orienta resoluções da Organização das Nações Unidas e documentos multilaterais, incluindo os que circulam no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC).

As desigualdades vividas por afrodescendentes se expressam em territórios concretos. Nas cidades, o legado da segregação espacial empurra essa população para áreas mais vulneráveis, com maior exposição a enchentes, deslizamentos e ondas de calor. No campo, quilombolas, palenques e outras comunidades rurais da diáspora enfrentam impactos desproporcionais devido à falta de reconhecimento territorial, menor acesso a recursos e vulnerabilidades acumuladas por gerações. Ignorar essas realidades na agenda climática é perpetuar desigualdades que a própria Conferência diz combater.

O movimento negro brasileiro, com longa trajetória de articulação internacional, está na COP30 defendendo a inclusão explícita de afrodescendentes nos textos de negociação. Não se trata de um gesto isolado, mas de uma continuidade histórica de luta por reconhecimento, reparação e justiça climática. O que está em jogo, ao fim, é o direito elementar de existir plenamente em um futuro que ainda está sendo negociado — palavra por palavra.