Como a ciência dá novo valor ao farelo de soja e às cascas de cacau


A busca por métodos mais limpos e eficientes para aproveitar o potencial nutricional e econômico de resíduos agroindustriais, como do cacau e soja, tem avançado de maneira consistente no Brasil. Um desses avanços nasce na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde pesquisadores desenvolveram um processo capaz de extrair isoflavonas do farelo de soja usando apenas solventes ambientalmente seguros e tecnologia de ondas ultrassônicas. O resultado combina economia de tempo, redução do impacto ambiental e aumento da biodisponibilidade das moléculas, o que abre novas frentes para sua aplicação em alimentos, cosméticos e suplementos.

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As isoflavonas já são amplamente conhecidas pela comunidade científica devido à sua ação antioxidante, antimicrobiana, anticancerígena e por seu papel na modulação hormonal, sobretudo na saúde da mulher. Seus derivados genisteína e daidzeína, que se ligam a receptores de estrogênio, ajudam no equilíbrio metabólico e podem amenizar sintomas da menopausa. No entanto, a extração tradicional dessas substâncias ainda depende de métodos demorados e solventes tóxicos, o que limita seu uso em escala comercial sustentável.

No Laboratório Multidisciplinar de Alimentação e Saúde da Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp, o pesquisador Pedro Henrique Santos e sua equipe decidiram enfrentar esse obstáculo. Utilizando uma combinação de solventes verdes submetidos a alta pressão e ondas ultrassônicas, o grupo conseguiu criar um sistema que rompe as estruturas do farelo de forma mais eficiente, liberando as isoflavonas com menor gasto energético e sem resíduos nocivos.

Após identificar a configuração ideal para extrair o maior volume de compostos, os cientistas aplicaram uma etapa adicional: a hidrólise enzimática. Essa fase final fragmenta as moléculas complexas e transforma as isoflavonas em suas formas mais ativas, genisteína e daidzeína, facilitando sua absorção pelo organismo. A integração dos processos reduziu pela metade o tempo necessário para a extração, gerou um extrato pronto para uso industrial e ainda preservou a fração proteica do farelo, que pode ser reaproveitada em rações ou suplementos proteicos à base de plantas.

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O avanço não se restringiu ao setor da soja. Parte dos mesmos pesquisadores decidiu explorar um subproduto abundante e frequentemente descartado: as cascas das amêndoas de cacau. Aromáticas como os tradicionais nibs, porém altamente fibrosas, elas têm sido ignoradas pela indústria apesar do conteúdo significativo de compostos bioativos. A equipe viu ali uma oportunidade de aumentar o valor econômico da cadeia do cacau e, ao mesmo tempo, desenvolver alternativas de ingredientes funcionais.

Com o apoio da pesquisadora María González-Miquel, da Universidad Politécnica de Madrid, e de Dario Arrua, do Future Industries Institute da University of South Australia, os estudos ganharam escala. Usando um sistema de extração sob pressão que opera com água e etanol, os pesquisadores conseguiram separar compostos como teobromina, cafeína e fenóis – todos com potencial para aplicações em alimentos, bebidas e produtos dermatológicos.

A solução obtida é posteriormente direcionada a um filtro inteligente, capaz de particionar as moléculas de acordo com sua afinidade química. Assim, frações ricas em teobromina podem ser isoladas para uso específico, enquanto outras contendo cafeína ou fenólicos são purificadas para aplicações distintas. Esse processo não só simplifica o controle de qualidade da matéria-prima vegetal como também permite que indústrias obtenham frações direcionadas com grau de pureza mais elevado.

Coordenadas pelo pesquisador Mauricio Ariel Rostagno e financiadas pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), as duas frentes de investigação mostram como tecnologias sustentáveis podem redefinir o uso de resíduos agroindustriais. Mais do que ampliar a oferta de ingredientes funcionais, elas indicam modelos de produção que conciliam inovação, economia e responsabilidade ambiental. As descobertas já foram publicadas na revista Food Chemistry e apontam para um cenário em que materiais considerados descartáveis ganham novo valor e aplicabilidade.