A tentativa de criar um sistema nacional para acompanhar, em detalhes, o caminho dos agrotóxicos no Brasil enfrenta um novo revés político em Brasília. A Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Decreto Legislativo 312/2025, que pretende anular a Portaria nº 805/2025 do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA). A medida, se confirmada, desmonta uma das principais iniciativas recentes para dar transparência ao mercado de pesticidas, reforçar a fiscalização e permitir que o país conheça, com precisão, onde, quanto e como essas substâncias são utilizadas.
O texto é de autoria do deputado Pedro Lupion, do partido Republicanos-PR, liderança influente da bancada ruralista e presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária. A proposta foi acolhida pelo relator, Rodolfo Nogueira (PL-MS), que defendeu a suspensão da norma por considerar que o MAPA teria ultrapassado os limites legais ao impor exigências de rastreamento consideradas, pelo colegiado, excessivas e inviáveis.
A Portaria nº 805/2025 criaria uma estrutura nacional integrada para monitorar todo o percurso dos defensivos agrícolas: da importação ou fabricação à distribuição, transporte, venda e uso final. O objetivo era semelhante ao de sistemas implementados por países com forte produção agropecuária: rastrear substâncias perigosas, reduzir desvios de finalidade, combater o contrabando e ampliar a capacidade de investigar surtos de intoxicação e contaminação ambiental.
O parecer aprovado na Comissão rejeita essa visão. Nogueira argumentou que a portaria impunha obrigações desproporcionais, como o rastreamento em tempo real de caminhões e a identificação individual de cada embalagem. Para o parlamentar, isso faria com que a norma fosse “manifestamente arbitrária”, impondo custos operacionais que ele considera incompatíveis com a realidade do agronegócio brasileiro. O relator criticou também a adoção compulsória do Sistema Brasil-ID, tecnologia baseada em radiofrequência (RFID) que, segundo ele, estaria defasada desde 2018.

SAIBA MAIS: Cidades de São Paulo estão sendo contaminadas por agrotóxicos carregados pelas chuvas
Esse embate revela muito mais do que uma disputa sobre ferramentas tecnológicas. Ele escancara uma divergência histórica entre projetos de fiscalização ambiental e sanitária e os interesses da bancada ruralista, frequentemente contrária ao que chama de “burocratização” da agricultura. Para os defensores do PDL, a portaria criaria um ecossistema de vigilância impraticável e caro. Para ambientalistas e especialistas em saúde pública, ela oferecia uma oportunidade inédita de compreender o ciclo dos pesticidas e enfrentar danos há décadas conhecidos, mas pouco investigados.
O Brasil hoje lidera, com folga, o ranking mundial de consumo de agrotóxicos. Ao mesmo tempo, boa parte dos casos de intoxicação aguda, contaminação de água, deriva aérea e exposição crônica permanece invisível. Sem rastreabilidade, identificar a origem de um surto de intoxicação em trabalhadores rurais, ou o responsável por um lote de alimentos contaminado, torna-se um labirinto burocrático. O mesmo ocorre nas fronteiras agrícolas, onde pesticidas ilegais entram no país com facilidade, abastecendo mercados clandestinos e alimentando o mercado paralelo que há anos preocupa o Ibama e órgãos estaduais de fiscalização.
Pesquisadores de saúde ambiental também alertam para as dificuldades de rastrear a rota dos produtos que chegam a comunidades vulneráveis, terras indígenas e pequenos municípios, onde a vigilância sanitária raramente dispõe de estrutura adequada. Para eles, a rastreabilidade é uma ferramenta de proteção coletiva, não um instrumento de punição ao produtor.
A decisão da Comissão de Agricultura, no entanto, empurra o debate para outro terreno: o da constitucionalidade. O PDL agora segue para análise da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que avaliará se a portaria efetivamente extrapolou o poder regulamentar do Executivo. Caso seja aprovado, o projeto será encaminhado ao plenário da Câmara, onde a correlação de forças entre governo, oposição e bancada ruralista decidirá seu destino.
A disputa sobre a rastreabilidade se tornou, assim, um símbolo de um dilema maior. De um lado, o avanço de políticas que buscam mais controle, transparência e segurança sanitária. De outro, a resistência de setores que enxergam nessas mesmas políticas um risco de aumento de custos e de intervenção estatal no modelo de produção agrícola.
O embate segue aberto. E o resultado terá impacto direto sobre a capacidade do país de lutar contra agrotóxicos ilegais, investigar casos de contaminação e garantir que a produção de alimentos conviva com padrões mínimos de segurança para trabalhadores, consumidores e ecossistemas.














































