Acordo UE-Mercosul é adiado diante de resistências internas na Europa


Um acordo histórico que volta a escorregar no calendário

O acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul, negociado há mais de duas décadas e frequentemente apresentado como um marco potencial do comércio internacional, voltou a ser adiado. A assinatura, que deveria ocorrer durante a cúpula do Mercosul em Foz do Iguaçu, foi empurrada para janeiro, após a constatação de que não havia apoio político suficiente entre os Estados-membros europeus para a formalização imediata.

Reprodução

O anúncio foi feito pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, durante reunião com líderes da União Europeia em Bruxelas. A decisão escancara as dificuldades internas do bloco europeu em conciliar interesses comerciais globais com pressões políticas domésticas, especialmente no setor agrícola. Para que o acordo fosse assinado, era necessária a aprovação da maioria dos 27 países da União Europeia, algo que não se concretizou.

O novo adiamento não representa o fim do processo, mas evidencia o caráter frágil do consenso europeu. O tratado segue tecnicamente concluído, porém politicamente suspenso, à espera de um alinhamento que vá além das vantagens econômicas e enfrente resistências internas cada vez mais organizadas.

A resistência agrícola e o peso político da França e da Itália

A principal barreira à assinatura do acordo segue concentrada em dois países: França e Itália. Ambos enfrentam forte pressão de seus agricultores, que veem no tratado uma ameaça direta à competitividade do setor agropecuário europeu. A entrada facilitada de produtos sul-americanos, como carne bovina, açúcar, arroz, mel e soja, é interpretada como um risco à renda e à sobrevivência de pequenos e médios produtores locais.

Na França, a oposição ao acordo tornou-se uma bandeira política transversal, mobilizando sindicatos agrícolas, parlamentares e governos regionais. Paris, nos últimos dias, atuou de forma ativa para articular apoio de outros países europeus ao adiamento, reforçando a narrativa de que o tratado precisa de salvaguardas ambientais e sociais mais robustas.

A Itália, por sua vez, adota uma posição mais ambígua. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva relatou ter conversado diretamente com a primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, que teria manifestado não ser contrária ao acordo em si, mas reconhecido dificuldades políticas internas. Segundo Lula, Meloni pediu um prazo de até um mês para tentar convencer os agricultores italianos de que o tratado pode trazer benefícios ao país.

Esse cenário revela como o acordo extrapola o campo técnico do comércio exterior e se transforma em um teste de governabilidade interna para líderes europeus, especialmente em um contexto de crescimento de movimentos protecionistas e de desconfiança em relação à globalização.

2024-12-05t110820z_1_lynxnpekb40dx_rtroptp_4_ue-vonderleyen-mercosul-400x239 Acordo UE-Mercosul é adiado diante de resistências internas na Europa
REUTERS/YVES HERMAN/PROIBIDA REPRODUÇÃO

SAIBA MAIS: Oportunidades do Mercosul-União Europeia para o Agronegócio Sustentável Brasileiro

Um tratado de escala continental e interesses cruzados

Caso seja efetivamente assinado e ratificado, o acordo entre a União Europeia e o Mercosul criará uma das maiores áreas de livre comércio do planeta. Juntos, os dois blocos reúnem cerca de 722 milhões de consumidores e um Produto Interno Bruto combinado estimado em aproximadamente US$ 22 trilhões. Trata-se de uma integração econômica com potencial para redesenhar fluxos comerciais entre a América do Sul e a Europa.

Do lado europeu, o tratado amplia o acesso a mercados estratégicos para a exportação de veículos, máquinas, equipamentos industriais, vinhos e bebidas alcoólicas. Para países como Alemanha e Espanha, que apoiam abertamente a assinatura, o acordo representa uma oportunidade de fortalecer cadeias produtivas e ampliar presença em economias emergentes.

Para o Mercosul, o ganho está concentrado sobretudo no setor agropecuário. A redução de tarifas e barreiras facilitaria a entrada de produtos agrícolas sul-americanos no mercado europeu, tradicionalmente protegido. Esse ponto, justamente, é o que alimenta a resistência dos agricultores europeus, que alegam assimetrias regulatórias e custos ambientais mais elevados.

A tensão entre abertura comercial e proteção setorial expõe um dilema clássico da política econômica internacional: como equilibrar ganhos macroeconômicos de longo prazo com perdas concentradas e politicamente sensíveis no curto prazo.

O adiamento como estratégia e não como derrota definitiva

Embora o novo adiamento represente um revés para a Comissão Europeia e para países favoráveis à assinatura imediata, como Alemanha e Espanha, ele também pode funcionar como uma válvula de escape política. O ministro da Fazenda do Brasil, Fernando Haddad, avaliou que um atraso pode, paradoxalmente, aumentar as chances de conclusão do acordo, ao permitir ajustes, concessões e amadurecimento do debate interno na Europa.

A leitura do governo brasileiro é que forçar a assinatura sem consenso poderia fragilizar o tratado no momento seguinte, durante os processos de ratificação nos parlamentos nacionais. Um acordo assinado sob forte contestação correria o risco de ser rejeitado mais adiante, transformando uma vitória diplomática em um impasse prolongado.

Nesse sentido, o adiamento para janeiro preserva o acordo como possibilidade concreta, ainda que adie sua materialização. Ele também reforça a percepção de que o Mercosul–União Europeia não é apenas um tratado comercial, mas um pacto político complexo, que envolve agricultura, meio ambiente, soberania regulatória e disputas internas de poder.

Depois de mais de 20 anos de negociações, o acordo segue vivo, mas suspenso em um delicado equilíbrio entre interesses globais e pressões locais. O próximo mês dirá se a Europa conseguirá transformar hesitação em consenso ou se o tratado continuará a ocupar o limbo das grandes promessas do comércio internacional.