Um sapo do tamanho de um lápis e um grande debate ambiental


Um sapo minúsculo que revela grandes lacunas do conhecimento

A descoberta de uma nova espécie na Mata Atlântica, um dos biomas mais estudados e devastados do planeta, funciona como um lembrete incômodo: ainda sabemos muito pouco sobre a biodiversidade brasileira. No alto da Serra do Quiriri, entre Santa Catarina e Paraná, um anfíbio que cabe na ponta de um lápis passou séculos invisível aos olhos da ciência. Agora descrito como Brachycephalus lulai, o pequeno sapo integra um gênero exclusivo do Brasil e joga luz sobre a urgência de proteger ecossistemas de altitude cada vez mais pressionados.

Foto: Luiz Fernando Ribeiro

Vivendo escondido na serrapilheira úmida das florestas nebulares, o sapinho só se denuncia por um canto curto, emitido em poucas horas do dia. Sua existência discreta ajuda a explicar por que demorou tanto a ser reconhecido formalmente. Em regiões montanhosas, de acesso difícil e clima severo, a biodiversidade segue guardada como um arquivo ainda pouco consultado da história evolutiva sul-americana.

Com tamanho variando entre 8,9 e 13,4 milímetros, o novo Brachycephalus carrega adaptações extremas: desenvolvimento direto, sem fase de girino; resistência a baixas temperaturas; incapacidade de nadar; e poucos dedos. Essas características revelam uma longa história de especialização às florestas de altitude da Mata Atlântica, que se estendem entre 700 e 1.800 metros acima do nível do mar.

Um gênero antigo, uma ciência tardia

Apesar de parecer recente, o gênero Brachycephalus é conhecido pela ciência há mais de duzentos anos. O naturalista alemão Johann Baptist von Spix registrou a primeira espécie no início do século 19, logo após chegar ao Brasil. Curiosamente, o mesmo pesquisador daria nome à ararinha-azul (Cyanopsitta spixii), outro símbolo da biodiversidade brasileira e de seus riscos de extinção.

Depois dessa primeira descrição, o gênero passou mais de um século praticamente esquecido. Apenas no fim do século 20 e início dos anos 2000, com o avanço das pesquisas em herpetologia e o interesse renovado pela Mata Atlântica, os pequenos sapos voltaram ao radar científico. Hoje, são 45 espécies descritas, todas endêmicas do bioma.

Essa explosão recente de descobertas não indica que os anfíbios “surgiram” agora, mas sim que faltaram olhos, recursos e interesse científico por décadas. Como explica o pesquisador Luiz Fernando Ribeiro, o gênero sempre foi tão diverso quanto outros grupos de anfíbios, mas permaneceu negligenciado. A biodiversidade, nesse caso, estava menos ausente da natureza do que da agenda científica.

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Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

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Nove anos de ciência para nomear um sapo

A descrição do Brachycephalus lulai, publicada na revista científica PLOS One, exigiu quase uma década de trabalho. Foram nove anos de expedições, trilhas íngremes e longas horas tentando localizar os animais pelo canto quase imperceptível. O esforço de campo foi apenas metade do desafio.

No laboratório, análises moleculares e estudos acústicos foram decisivos para diferenciar a nova espécie de parentes visualmente semelhantes. A coloração, muitas vezes parecida entre espécies do gênero, engana até especialistas experientes. O canto, por outro lado, funciona como uma assinatura evolutiva. Como explicou o biólogo Marcos Bornschein, ouvir foi tão importante quanto ver.

Os pesquisadores também reorganizaram o gênero em três grandes grupos, com diferenças marcantes: espécies mais coloridas e montanhosas; aquelas com placas ósseas no dorso; e os chamados “sapos-pulga”, ainda menores. Essa classificação ajuda a compreender padrões evolutivos e reforça a importância científica do novo achado.

O nome escolhido para a espécie chamou atenção além dos círculos acadêmicos. Ao batizá-la de Brachycephalus lulai, os pesquisadores fizeram referência ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, destacando sua política de criação de áreas protegidas. Segundo dados do <a href=”https://www.gov.br/mma” target=”_blank”>Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA)</a>, cerca de 25 milhões de hectares em unidades de conservação federais foram criados durante seus mandatos anteriores.

Conservação, clima e a disputa pelo futuro das montanhas

Do ponto de vista climático, o novo sapinho pode enfrentar desafios distintos dos seus parentes. Em um cenário de aquecimento global, as florestas de altitude tendem a avançar sobre campos mais altos, num deslocamento vertical da vegetação. Segundo Bornschein, essa dinâmica pode, no curto prazo, ser acompanhada pelo anfíbio.

O maior risco, porém, vem de impactos diretos e localizados: desmatamento, degradação florestal e fragmentação das serras, que funcionam como verdadeiras “ilhas no céu”. Qualquer perturbação mais intensa pode comprometer toda a população da espécie de uma só vez, alerta Ribeiro.

Essa fragilidade ecológica reacendeu o debate sobre a criação de uma nova unidade de conservação na região. Organizações como a <a href=”https://www.maternatura.org.br” target=”_blank”>Mater Natura – Instituto de Estudos Ambientais</a>, responsável por colaborar na identificação de cerca de 40% das espécies do gênero Brachycephalus, defendem a criação de um parque nacional abrangendo áreas das serras do Quiriri, em Santa Catarina, e do Araçatuba, no Paraná.

A proposta busca proteger florestas nebulares, campos de altitude e espécies endêmicas, além de serviços ecossistêmicos essenciais, como a produção de água, a estabilidade climática regional e o potencial para o turismo sustentável. No entanto, o parque não é consenso. Enquanto alguns parlamentares afirmam que o traçado não afeta agricultores ou áreas produtivas, outros criticam possíveis restrições ao uso da terra e cobram maior participação social.

Para Paulo Pizzi, presidente da Mater Natura, a discussão precisa ir além do curto prazo. Se esses ambientes desaparecerem, não se perde apenas um sapo minúsculo, mas histórias evolutivas inteiras ainda desconhecidas. O Brachycephalus lulai, silencioso e quase invisível, tornou-se assim um símbolo de um dilema maior: qual modelo de desenvolvimento o Brasil quer para seus últimos refúgios naturais de altitude.