A cena é repetida todas as manhãs nas margens dos rios do Pará. Barqueiros carregam suas embarcações com latas de açaí recém-colhido, cada uma pesando em média 14 quilos. O destino é a cidade, onde fábricas de beneficiamento transformam o fruto roxo em polpa congelada, pó desidratado ou embalagens prontas para smoothies e tigelas gourmet. O trajeto, que começa nas palmeiras manejadas por ribeirinhos, termina nos cardápios de cafeterias de Nova York ou nas prateleiras de mercados orgânicos da Califórnia.

Esse ciclo, no entanto, foi abruptamente abalado pelo tarifaço imposto pelos Estados Unidos no início de agosto. Ao excluir o açaí da lista de 700 produtos isentos da sobretaxação, a medida transformou o símbolo maior da bioeconomia amazônica em alvo de um jogo geopolítico que atravessa fronteiras e chega ao coração da floresta.
A Amazônia no tabuleiro global
O mercado americano não é apenas um destino entre outros. Ele absorve três quartos de todo o açaí exportado pelo Brasil. Em 2023, foram 61 mil toneladas embarcadas, que renderam US$ 45 milhões em receita externa. Só no primeiro semestre de 2025, as vendas cresceram 59% em relação ao mesmo período do ano anterior, consolidando uma trajetória de duas décadas de expansão.
De repente, esse caminho parece ameaçado. O aumento tarifário deve provocar retração imediata de pelo menos 8% nos volumes exportados, segundo estimativas da Fiepa (Federação das Indústrias do Estado do Pará). “A queda impacta a renda de milhares de famílias, a sustentabilidade da cadeia produtiva e a imagem internacional do açaí paraense, que é um produto de forte valor socioambiental”, alerta Alex Carvalho, presidente da entidade.
A ponta mais frágil: os ribeirinhos
Na prática, quem sente primeiro o golpe são os extrativistas. O preço pago por lata, que hoje varia entre R$ 90 e R$ 150, corre o risco de cair diante da compressão de margens das indústrias exportadoras. Para comunidades que vivem quase exclusivamente da coleta do fruto, isso significa menos dinheiro para alimentação, transporte, saúde e educação.
“O tarifaço pode reduzir o valor pago ao produtor, que já depende de uma safra incerta e do preço do dia na beira do rio. Essa instabilidade mina a segurança financeira das famílias e ameaça todo o modelo de bioeconomia que vinha se consolidando”, explica Denise Acosta, presidente do Sindfrutas Pará.
O impacto não é apenas econômico. Nas comunidades ribeirinhas, o açaí não é apenas mercadoria: é parte da dieta diária, moeda de troca local, expressão cultural. Qualquer oscilação no preço reverbera no cotidiano, alterando hábitos e forçando ajustes dolorosos.

Indústria pressionada, empregos em risco
O Pará concentra 95% da produção nacional e 180 fábricas de beneficiamento. Essa estrutura gera 5 mil empregos diretos e outros 15 mil indiretos, que vão desde os barqueiros que transportam o fruto até as equipes de exportação. O tarifaço americano ameaça essa engrenagem.
Empresas que dependem fortemente do mercado norte-americano já relatam dificuldades. Algumas têm cargas paradas em portos dos EUA aguardando definições. Outras estudam recorrer a linhas de crédito do programa federal Brasil Soberano, que oferece suporte para evitar demissões em momentos de crise.
“A gente perde muito com isso, mas os americanos também perdem. Há franquias e redes de alimentação que começam a ficar desabastecidas. O açaí deixou de ser produto exótico para se tornar item cotidiano do consumo saudável nos Estados Unidos”, afirma Acosta.
O problema da dependência
O tarifaço expõe uma fragilidade conhecida, mas até agora subestimada: a concentração das exportações em um único destino. “Embora não exista equivalente made in USA, o açaí concorre indiretamente com smoothies e outras preparações de frutas silvestres. Se o preço subir demais, o consumidor pode migrar”, alerta Carvalho.
Abrir novos mercados, no entanto, não é simples. O grupo EcoFoods, com quatro fábricas no Pará, levou mais de um ano para conquistar clientes no Japão. Foram necessárias análises laboratoriais, atestados sanitários, visitas técnicas de inspetores japoneses. “Foi um processo longo e custoso. A diversificação de mercados é fundamental, mas não acontece do dia para a noite”, lembra José Bonifácio Sena, diretor da empresa.
A China aparece no horizonte como possível alternativa. Delegações de compradores devem visitar Belém em novembro, durante a COP30. Mas conquistar espaço em um mercado exigente como o chinês depende de rastreabilidade, certificações ambientais e comprovação de práticas sustentáveis — requisitos cada vez mais valorizados pelos consumidores globais.

O pano de fundo geopolítico
O tarifaço não se explica apenas pela lógica econômica. É parte da estratégia de Donald Trump de reposicionar os EUA no comércio global por meio de medidas protecionistas radicais. Produtos tropicais e de forte valor simbólico, como o açaí, acabam servindo de moeda em disputas mais amplas.
Nesse sentido, a Amazônia torna-se personagem involuntária da nova desordem mundial. As cadeias produtivas que sustentam milhares de famílias no Pará passam a ser impactadas por decisões tomadas a milhares de quilômetros, em gabinetes onde a floresta é reduzida a cifra ou barganha.
Bioeconomia em xeque
O açaí havia se tornado um exemplo recorrente de como a floresta em pé pode gerar riqueza. Com uma cadeia de R$ 7 bilhões anuais, o fruto era citado em relatórios de sustentabilidade, apresentações diplomáticas e projetos de desenvolvimento regional. O tarifaço, no entanto, revela a fragilidade desse modelo quando ele se ancora em mercados externos instáveis.
“O produto tem impacto socioambiental positivo, mas estamos expostos a riscos externos que fogem ao nosso controle. Isso mostra como a bioeconomia precisa ser pensada de forma mais estratégica, com diversificação de destinos e valorização do mercado interno”, avalia Carvalho.
O futuro incerto
O setor ainda tenta se recuperar da quebra de safra de 2024, que reduziu a produção em 12,5%. Agora, enfrenta a perspectiva de retração nas exportações. Para as famílias ribeirinhas, o desafio é sobreviver à incerteza: uma oscilação de preços pode significar a diferença entre manter a rotina ou ver a renda familiar despencar.
No fim, o tarifaço americano não atinge apenas números de exportação. Ele atravessa rios, atinge vilarejos e coloca em risco conquistas recentes de uma bioeconomia que se vendia como alternativa sustentável à destruição da floresta.
A cada lata de açaí negociada por valores menores, não é só o bolso do produtor que perde. É a própria ideia de que a Amazônia pode prosperar sem ser devastada que entra em xeque.







































