Coinfecção por nova espécie de parasita é confirmada em paciente com leishmaniose visceral

Autor: Redação Revista Amazônia

O primeiro caso de manifestação concomitante de leishmaniose visceral e leishmaniose cutânea não ulcerada foi relatado recentemente por pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) no International Journal of Infectious Diseases. Financiado pela FAPESP, o trabalho chama atenção para novos aspectos de uma doença que avança por todo o país.

O paciente, uma criança do sexo masculino atendida no hospital vinculado à Universidade Federal de Sergipe (UFS), estava infectado pelo protozoário Leishmania infantum, causador de leishmaniose visceral, e por outro parasita do gênero Crithidia de espécie ainda não confirmada, que provoca sintomas semelhantes ao da leishmaniose, em alguns casos mais graves.

Nas Américas, o Brasil é o país mais afetado pela leishmaniose visceral, tendo como principal agente a Leishmania infantum. A doença pode ser letal se não diagnosticada ou tratada corretamente. Entre os sintomas clássicos estão febre, aumento do baço e do fígado e diminuição de todos os tipos de células sanguíneas (pancitopenia).

Nos últimos anos, com o avanço da genômica, pesquisadores passaram a observar que pacientes com leishmaniose podem estar coinfectados por outras espécies de tripanossomatídeos além de Leishmania, como as dos gêneros Leptomonas e Crithidia, que, a princípio, não são patogênicos ao homem, ou Trypanosoma (grupo de protozoários que inclui o causador da doença de Chagas). Geralmente associados à imunossupressão, casos como esses passaram a ser observados também em pessoas sem comprometimento imunológico.

Em 2019, o mesmo grupo de pesquisadores descreveu um caso fatal de doença semelhante à leishmaniose visceral, mas que acreditavam ser causada por uma nova espécie de parasita do gênero Crithidia – diferente da já conhecida C. fasciculata, que parasita apenas insetos (leia mais em: agencia.fapesp.br/31573/).

O relato gerou polêmica na comunidade científica: enquanto as espécies de Leishmania são dixênicas, ou seja, têm uma fase do ciclo em que se mantêm no vetor (inseto) e outra no hospedeiro mamífero (humano), esse outro gênero é considerado monoxênico e sobrevive somente em um tipo de hospedeiro (geralmente insetos, como o pernilongo comum).

A principal explicação alternativa levantada na época foi a de que poderia se tratar de um caso de coinfecção: o paciente estaria infectado tanto com Leishmania infantum quanto com Crithidia, que é uma espécie de fácil crescimento em condições laboratoriais e, se cultivada juntamente com L. infantum, elimina esta última da cultura.

Foi justamente a ocorrência de coinfecção que os pesquisadores demonstraram desta vez: o sequenciamento genômico de amostras da medula óssea e do baço da criança de Sergipe revelou, além de Leishmania infantum, a presença de Crithidia. Além disso, a criança teve uma manifestação clínica atípica da leishmaniose visceral descrita como “leishmaniose cutânea não ulcerada”, que se apresenta como lesões nodulares na pele, das quais foram isolados parasitas de L. infantum. O paciente, acompanhado entre 2016 e 2020 no Hospital Universitário de Sergipe, apresentou múltiplas recidivas de leishmaniose visceral refratária aos tratamentos disponíveis, complicações clínicas, rara manifestação cutânea e passou por esplenectomia (remoção cirúrgica do baço).

Além disso, resultados do sequenciamento genômico dos parasitas isolados do paciente sugerem que a espécie de Crithidia encontrada não é, de fato, a C. fasciculata, mas outra ainda sem nome definido.

“Esses resultados abrem espaço para uma série de novas hipóteses não só sobre o gênero Crithidia, mas sobre a própria leishmaniose”, afirma Sandra Regina Costa Maruyama, professora do Programa de Pós-Graduação em Genética Evolutiva e Biologia Molecular (PPGGEv) da UFSCar, pesquisadora do Programa Jovens Pesquisadores vinculada ao Departamento de Genética e Evolução da UFSCar e coordenadora do estudo – financiado pela FAPESP por meio de cinco projetos (16/20258-0, 17/16328-6, 19/12142-0, 20/14011-8 e 21/12464-8).

“Qual parasita causou a primeira infecção? O paciente já apresentava um quadro grave de leishmaniose visceral e por isso se tornou mais suscetível à essa nova infecção por Crithidia? Uma infecção primária por Crithidia deixaria posteriormente o hospedeiro mais suscetível à infecção por L. infantum? Qual seria o vetor de transmissão de Crithidia para os humanos? Estaria o mesmo inseto vetor coinfectado pelos dois parasitas? No momento, temos muito mais perguntas do que respostas, por isso a importância de se estudar as infecções por Crithidia em hospedeiros vertebrados e identificar os possíveis vetores”, acrescenta.

Maruyama ressalta ainda que estudos recentes sobre metagenômica de insetos vetores têm mostrado que flebotomíneos (insetos que transmitem a leishmaniose) carregam diversos microrganismos, como vírus, bactérias e tripanossomatídeos (entre eles Crithidia).

Novo alvo para diagnóstico

Geralmente, o diagnóstico da leishmaniose visceral se dá pela sintomatologia clínica (os sintomas são comuns a várias outras doenças infecciosas) associada aos aspectos epidemiológicos da doença. A principal estratégia usada atualmente no SUS é o teste rápido, um método indireto que detecta no paciente a presença de anticorpos contra a Leishmania e não o próprio parasita.

Apesar de prático, não é altamente específico como os métodos moleculares, que detectam diretamente a presença do protozoário na amostra. Por isso, para diferenciar com mais precisão a Leishmania infantum e a espécie de Crithidia durante a realização deste estudo, os pesquisadores desenvolveram um método molecular de detecção específica dessas espécies, que já foi utilizado no artigo recentemente publicado e será descrito detalhadamente em novo artigo em breve. “Conseguimos encontrar a mesma espécie de Crithidia em várias outras amostras de pacientes com leishmaniose visceral”, revela Maruyama.

Saúde pública

Além de investigar a possível nova espécie de Crithidia para confirmar se é mesmo um parasita emergente, capaz de causar impacto no país, o próximo passo do estudo será investigar o efeito da coinfecção, ou seja, se ela agrava a leishmaniose visceral.

“Sabe-se que uma pequena parcela dos pacientes que testam positivo para a infecção por Leishmania de fato desenvolvem a doença, porém, esses exames são sorológicos e as proteínas dos parasitas são muito semelhantes, impedindo a distinção completa de qual é a espécie infectante”, diz Maruyama.

De acordo com a pesquisadora, se aprofundar no tema e entender esse novo componente é fundamental em um cenário de avanço da leishmaniose visceral pelo país. “Se antes a leishmaniose visceral estava concentrada no Nordeste, hoje casos da doença já são encontrados até no Sul do país. Minas Gerais está num estado crítico e os especialistas têm nos alertado sobre o avanço da doença no Estado de São Paulo.”

O artigo Co-infection of Leishmania infantum and a Crithidia-related species in a case of refractory relapsed visceral leishmaniasis with non-ulcerated cutaneous manifestation in Brazil pode ser lido em: www.ijidonline.com/article/S1201-9712(23)00563-5/fulltext.


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