A matriz energética brasileira, muitas vezes exaltada por sua alta participação de fontes renováveis, é um dos pilares centrais do debate sobre a transição energética no Brasil e no mundo. Com 49,1% de sua matriz composta por fontes renováveis em 2023, segundo o Balanço Energético Nacional (BEN), o Brasil está à frente de muitas outras economias emergentes e desenvolvidas. No entanto, apesar desse destaque, o país enfrenta uma série de desafios para expandir ainda mais a participação das energias limpas e garantir que a transição seja justa, inclusiva e sustentável.
Neste capítulo, abordaremos a composição atual da matriz energética brasileira, seus principais desafios e as oportunidades que o país tem para avançar na transição energética até 2045. Exploraremos as complexidades do setor, as tensões entre a dependência histórica de combustíveis fósseis e as necessidades de descarbonização, e como essas forças moldam o futuro da energia no Brasil.
1. Composição da Matriz Energética Brasileira: Um Retrato Atual
O Brasil apresenta uma matriz energética diversificada, com uma combinação significativa de energias renováveis e não renováveis. Em 2023, as energias renováveis corresponderam a 49,1% da matriz energética total do país, um número bastante elevado em comparação com a média global. A matriz elétrica, especificamente, é ainda mais renovável: 89,2% da eletricidade gerada no Brasil vem de fontes como hidrelétricas, eólicas, solares e biomassa.
Apesar de liderar no uso de fontes renováveis, o Brasil ainda depende de uma parcela considerável de combustíveis fósseis. O petróleo e seus derivados representam 35,1% da matriz energética, enquanto o gás natural corresponde a 9,6% e o carvão mineral, 4,4%. Essa dependência de combustíveis fósseis, especialmente no setor de transportes, apresenta um dos maiores obstáculos para a descarbonização completa da matriz energética brasileira.
A predominância das hidrelétricas na matriz elétrica brasileira, embora seja um fator positivo no que diz respeito às baixas emissões de gases de efeito estufa (GEE), também coloca o país em uma posição vulnerável às variações climáticas. Secas prolongadas, como as que ocorreram na região amazônica em 2023 e 2024, podem reduzir drasticamente a capacidade de geração de energia hidrelétrica, levando ao acionamento de usinas termelétricas, que utilizam combustíveis fósseis e aumentam as emissões de GEE.
Essa configuração atual da matriz energética brasileira cria tanto desafios quanto oportunidades para o futuro. O país está em uma posição única para continuar a liderar no uso de energias renováveis, mas precisa lidar com a pressão econômica e política para manter a produção de petróleo e gás, que ainda desempenham um papel crucial na economia.
2. A Crise Climática e a Vulnerabilidade da Matriz Hidrelétrica
A dependência do Brasil em relação às hidrelétricas é um dos pontos mais discutidos quando se trata de segurança energética. As hidrelétricas, responsáveis por 58,9% da eletricidade gerada em 2023, têm sido a base do fornecimento de energia do país há décadas. No entanto, essa dependência está se tornando cada vez mais arriscada em face das mudanças climáticas.
A crise climática está intensificando os ciclos de seca e a variabilidade das chuvas, afetando diretamente os reservatórios das hidrelétricas. Em 2023, a severa seca na bacia do Rio Madeira, que abastece uma das maiores usinas hidrelétricas do Brasil, Santo Antônio, forçou o desligamento de parte de suas turbinas, comprometendo o fornecimento de energia elétrica. Com as projeções de que esses eventos climáticos extremos serão cada vez mais frequentes, o Brasil precisa diversificar suas fontes de energia para reduzir sua vulnerabilidade a essas oscilações.
Além da vulnerabilidade climática, as hidrelétricas também enfrentam desafios socioambientais significativos. A construção de grandes usinas hidrelétricas em regiões sensíveis, como a Amazônia, tem gerado conflitos com comunidades locais, incluindo populações indígenas, e tem sido associada à perda de biodiversidade e ao deslocamento de milhares de pessoas. Portanto, embora as hidrelétricas sejam uma fonte de energia limpa do ponto de vista das emissões de carbono, é essencial que o Brasil considere os impactos socioambientais ao planejar novos projetos desse tipo.
3. Energias Eólica e Solar: Crescimento Acelerado e Novas Oportunidades
Entre as fontes de energia renovável que mais cresceram no Brasil nos últimos anos estão a eólica e a solar. A energia eólica, especialmente no Nordeste, já responde por 13,2% da matriz elétrica, e a capacidade instalada de usinas solares fotovoltaicas cresceu 68,1% em 2023, representando 7% da eletricidade gerada no país.
O Brasil tem um dos maiores potenciais do mundo para a geração de energia eólica e solar, e essas fontes têm desempenhado um papel fundamental na diversificação da matriz elétrica. A energia eólica, em particular, aproveita os fortes ventos que sopram consistentemente ao longo da costa nordestina, permitindo uma produção estável e de baixo custo. Já a energia solar, embora ainda em expansão, apresenta um enorme potencial, especialmente em regiões como o semiárido brasileiro, onde a irradiação solar é alta e constante.
Os investimentos nessas tecnologias têm se mostrado promissores, e o Brasil já é um dos maiores mercados de energia solar fotovoltaica distribuída do mundo. Com incentivos adequados, essas fontes renováveis podem não apenas ajudar o país a reduzir sua dependência de hidrelétricas e combustíveis fósseis, mas também promover a descentralização da geração de energia, permitindo que mais consumidores, incluindo aqueles em áreas rurais e isoladas, se tornem produtores de sua própria eletricidade.
Contudo, o crescimento acelerado dessas fontes também traz desafios, como a necessidade de investimentos em infraestrutura de transmissão e armazenamento de energia. Atualmente, a capacidade de transmissão de eletricidade das regiões que mais produzem energia eólica e solar, como o Nordeste, para os grandes centros consumidores, como o Sudeste, é limitada, o que pode resultar em desperdício de energia. Além disso, como a energia eólica e solar são intermitentes – dependendo do vento e do sol para funcionar – o Brasil precisará investir em tecnologias de armazenamento de energia, como baterias, para garantir a estabilidade do sistema elétrico.
4. Biomassa e Biocombustíveis: O Papel do Setor Agrícola
Outra peça importante da matriz energética brasileira é a biomassa, que representa 8% da eletricidade gerada no país. A cana-de-açúcar é a principal fonte de biomassa no Brasil, usada tanto para a geração de eletricidade quanto para a produção de biocombustíveis, como o etanol e o biodiesel.
O Brasil é líder mundial na produção de biocombustíveis, em grande parte devido ao sucesso do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), lançado na década de 1970 para reduzir a dependência do país em relação ao petróleo importado. O etanol produzido a partir da cana-de-açúcar é amplamente utilizado como combustível em veículos no Brasil, e a mistura obrigatória de etanol na gasolina contribui para a redução das emissões de carbono no setor de transportes.
Além do etanol, o biodiesel, produzido a partir de óleos vegetais e gorduras animais, é outro biocombustível importante no Brasil. A mistura obrigatória de biodiesel no diesel fóssil tem aumentado gradualmente, com o objetivo de reduzir a dependência de combustíveis fósseis no setor de transportes.
No entanto, o uso da biomassa para a geração de energia e a produção de biocombustíveis também enfrenta desafios. A expansão da produção de cana-de-açúcar e de soja, principais culturas usadas na produção de etanol e biodiesel, pode resultar em desmatamento e perda de biodiversidade, especialmente se novas áreas forem abertas para o cultivo. Além disso, o uso de terras agrícolas para a produção de biocombustíveis levanta preocupações sobre a segurança alimentar, uma vez que áreas que poderiam ser usadas para a produção de alimentos estão sendo destinadas à produção de energia.
5. O Desafio dos Combustíveis Fósseis
Apesar do crescimento das fontes renováveis, os combustíveis fósseis ainda desempenham um papel importante na matriz energética brasileira, especialmente no setor de transportes. O petróleo e seus derivados representam mais de um terço da matriz energética do Brasil, e o país é um dos maiores produtores e exportadores de petróleo do mundo, com vastas reservas no pré-sal.
A Petrobras, a estatal brasileira de petróleo, é um dos principais atores do setor energético no país, e suas operações no pré-sal são uma das maiores fontes de receita para o governo brasileiro. No entanto, essa dependência do petróleo cria um dilema para o Brasil. Por um lado, a exploração e exportação de petróleo são fundamentais para a economia do país; por outro, o mundo está se movendo em direção à descarbonização, e a demanda por petróleo pode cair nas próximas décadas.
O setor de gás natural também é uma parte importante da matriz energética brasileira, representando 9,6% da oferta interna de energia. Embora o gás natural seja frequentemente promovido como um combustível de transição – por ser menos poluente do que o carvão e o petróleo –, sua produção e uso ainda resultam em emissões significativas de GEE. Além disso, a infraestrutura necessária para expandir o uso de gás natural, como terminais de regaseificação e gasodutos, pode criar um “lock-in” de investimentos em combustíveis fósseis, dificultando a transição para fontes de energia mais limpas no futuro.
6. Desafios da Pobreza Energética e Acesso Desigual à Energia
Apesar de o Brasil ser uma potência energética, o acesso à energia no país ainda é profundamente desigual. Milhões de brasileiros vivem em condições de pobreza energética, incapazes de pagar por serviços de energia essenciais para garantir uma vida digna. Em áreas rurais e remotas, especialmente na Amazônia, ainda há comunidades sem acesso regular à eletricidade, o que limita seu desenvolvimento econômico e social.
A pobreza energética no Brasil não se limita à falta de acesso à eletricidade. Mesmo nas áreas urbanas, muitas famílias de baixa renda lutam para pagar suas contas de luz, e algumas recorrem a métodos inseguros e poluentes, como o uso de lenha para cozinhar, agravando problemas de saúde pública e aumentando as desigualdades sociais.
A Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE) é uma medida importante para aliviar a carga sobre as famílias de baixa renda, mas é insuficiente para resolver o problema da pobreza energética no Brasil. Para garantir uma transição energética justa, o governo precisa implementar políticas que não apenas garantam o acesso universal à eletricidade, mas também promovam a eficiência energética e o acesso a tecnologias de geração distribuída, como a energia solar, para que as famílias possam gerar sua própria energia e reduzir seus custos.
7. A Necessidade de Reformas no Setor Elétrico
Uma transição energética bem-sucedida no Brasil também exigirá reformas significativas no setor elétrico. O sistema atual, baseado em grandes usinas hidrelétricas e termelétricas centralizadas, precisa ser modernizado para acomodar o crescimento das fontes renováveis intermitentes, como a solar e a eólica, e para permitir uma maior participação da geração distribuída.
A geração distribuída, em particular, tem o potencial de transformar o setor elétrico brasileiro, permitindo que consumidores residenciais e comerciais gerem sua própria energia a partir de painéis solares, por exemplo, e vendam o excedente para a rede elétrica. No entanto, para que esse modelo se expanda, são necessárias mudanças regulatórias que incentivem os investimentos em infraestrutura de transmissão e armazenamento de energia, bem como a criação de mecanismos que garantam que todos os consumidores, incluindo aqueles em áreas de baixa renda, tenham acesso a essas tecnologias.
Além disso, é fundamental que o governo reavalie os subsídios dados às termelétricas a carvão e gás natural, que aumentam as emissões de carbono e encarecem a energia para os consumidores. Em vez de continuar a subsidiar fontes de energia poluentes, o Brasil deve focar em incentivos para a expansão das energias renováveis e para a modernização da infraestrutura elétrica.
8. Caminhos para uma Transição Justa
A transição energética no Brasil é tanto uma oportunidade quanto um desafio. Com uma matriz energética já altamente renovável, o país tem uma vantagem competitiva única no cenário global. No entanto, para que o Brasil se torne uma potência ambiental até 2045, serão necessárias ações ousadas e coordenadas em todas as esferas da sociedade.
Revista Amazônia lança série especial: “Energia 2045: Brasil a Caminho da Potência Ambiental”
Investir em energias renováveis, promover a justiça energética e garantir que a transição seja inclusiva e sustentável são os principais desafios que o Brasil enfrentará nas próximas décadas. A transição energética não pode ser apenas uma questão técnica ou econômica; ela deve ser também uma oportunidade para corrigir desigualdades históricas e construir um futuro mais justo para todos os brasileiros.
Nos próximos capítulos, continuaremos a explorar as políticas e tecnologias necessárias para que o Brasil alcance suas metas de descarbonização e se consolide como líder global na luta contra as mudanças climáticas.
Matérias disponíveis: Energia 2045: Brasil a Caminho da Potência Ambiental