Queimadas em pastagens expõem um ponto cego da contabilidade climática brasileira
O fogo que avança sobre as paisagens rurais brasileiras deixa marcas visíveis na vegetação, no solo e no ar. Mas parte de seu impacto mais profundo permanece invisível nas estatísticas oficiais. Um estudo recente conduzido pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) em parceria com o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) revela que as emissões de gases de efeito estufa geradas por queimadas em áreas de pastagem — quando essas áreas não mudam de uso após o fogo — simplesmente não entram no Inventário Nacional de Emissões do Brasil.

Essa lacuna metodológica ganha peso especial em um contexto de intensificação das queimadas. Em 2024, o avanço do fogo sobre a vegetação nativa e áreas produtivas transformou os incêndios em um dos principais vetores do aumento das emissões nacionais, conforme apontado pelo estudo Brazil’s 2024 fires drove historic emission levels. Ao deixar de contabilizar parte relevante das emissões associadas às pastagens queimadas, o país corre o risco de subestimar o real impacto climático do uso do fogo no território rural.
O fogo no campo e a distorção dos números oficiais
Os dados levantados pelo IPAM e pelo Imaflora mostram que vegetação nativa e pastagens responderam juntas por 93% de toda a área queimada no Brasil. Embora as florestas concentrem a maior parte da atenção pública, as pastagens ocupam extensões igualmente expressivas e, quando queimadas, liberam volumes significativos de gases de efeito estufa.
O problema é que, no modelo atual do Inventário Nacional, as emissões por fogo só são contabilizadas quando há mudança no uso da terra — por exemplo, quando uma floresta queima e é convertida em pastagem. Já quando o fogo ocorre em áreas que já eram pastagens e continuam sendo pastagens após a queima, as emissões simplesmente não entram na conta.
Essa omissão afeta principalmente a contabilização de gases como o metano (CH4) e o óxido nitroso (N2O), ambos com elevado potencial de aquecimento global. O metano, por exemplo, aquece a atmosfera cerca de 28 vezes mais do que o dióxido de carbono em um horizonte de cem anos. Em áreas de pasto, a combustão da biomassa acima do solo gera pulsos significativos desses gases, intensificando o impacto climático das queimadas.
“Existe um volume relevante de emissões que simplesmente não aparece na contabilidade oficial”, explica Gabriel Quintana, analista de Ciência do Clima do Imaflora. Segundo ele, essa ausência distorce a compreensão real do papel do fogo no aquecimento global e dificulta a formulação de políticas públicas mais eficazes.

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Uma proposta metodológica para fechar a lacuna
O estudo não se limita ao diagnóstico do problema. Ele propõe uma metodologia concreta para incorporar essas emissões ao Inventário Nacional de Gases de Efeito Estufa. A ideia é contabilizar os gases liberados quando pastagens queimam, mesmo que não haja conversão do uso da terra, considerando emissões de metano, óxido nitroso, monóxido de carbono e óxidos de nitrogênio.
Atualmente, o inventário brasileiro já estima emissões por queimadas em algumas culturas agrícolas específicas, como cana-de-açúcar e algodão. As pastagens, apesar de estarem integralmente inseridas no setor agropecuário, permanecem fora desse cálculo quando o fogo ocorre “dentro da porteira”. Para Quintana, essa distinção não se sustenta do ponto de vista climático, sobretudo porque a maior parte da área de pasto queimada no país está localizada no bioma Amazônico.
A divisão de tarefas no estudo reforça a robustez da proposta. Enquanto o IPAM ficou responsável por calcular as emissões associadas a áreas florestais — primárias e secundárias — que queimaram e foram convertidas para outros usos, o Imaflora concentrou-se nas pastagens que queimaram e permaneceram como tal. O resultado é uma fotografia mais completa das emissões geradas pelo fogo em diferentes contextos de uso do solo.
Amazônia, políticas públicas e credibilidade climática
Os resultados indicam que as emissões oriundas da queima de pastagens estão historicamente concentradas na Amazônia, bioma que já registrou, em 2005, o maior pico de área queimada da série histórica. Mesmo quando o dióxido de carbono liberado nessas queimadas é classificado como emissão biogênica — por ser teoricamente reabsorvido com o crescimento da vegetação — o volume emitido em eventos de fogo é elevado e não pode ser ignorado na análise do impacto climático.
A metodologia proposta segue as diretrizes do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) e utiliza fatores de emissão e estoques de biomassa já empregados no Inventário Nacional. Isso, segundo os autores, facilita a incorporação oficial dessas emissões em futuras revisões metodológicas, sem a necessidade de criar sistemas paralelos de monitoramento.
O policy brief também destaca que a redução da área queimada observada em 2025 teve relação direta com ações coordenadas do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, do Ibama e de um conjunto de políticas de prevenção e controle do fogo. Ainda assim, os pesquisadores alertam que a melhora conjuntural não elimina o problema estrutural da subcontabilização.
Reconhecer oficialmente essas emissões é visto como um passo essencial para aumentar a transparência climática do Brasil, fortalecer a credibilidade do país no cenário internacional e orientar políticas públicas mais eficazes de combate ao fogo. Em um momento em que o agronegócio e o governo brasileiro buscam demonstrar compromisso com metas climáticas, tornar visível aquilo que hoje permanece fora dos números oficiais pode ser decisivo para alinhar discurso, ciência e ação.

















































