Substituição de espécies sensíveis por tolerantes ‘equilibra’ ecossistemas em áreas agrícolas, diz estudo


Ao estudar práticas de manejo sustentáveis para a agricultura, particularmente canaviais, pesquisadores brasileiros demonstraram que corpos d’água, como pequenas lagoas e mesmo poças, podem manter serviços ecossistêmicos, desde que existam nos arredores espécies animais tolerantes que substituam as mais sensíveis às práticas agrícolas.

Em um trabalho inovador, no qual áreas de cultivo em larga escala foram manipuladas, o grupo testou as consequências da intensificação do uso da terra comparando pastagens extensivas e intensivas e plantações de cana-de-açúcar, com simulações de lagoas e poças de 4 mil litros. Apesar de as áreas canavieiras terem recebido aplicação de inseticidas e de vinhaça, a biomassa no hábitat [quantidade de matéria orgânica animal] ficou estável nos três cenários.

Isso somente foi possível porque, após a aplicação dos produtos, a extinção local de um predador sensível (no caso a libélula) foi compensada pela colonização de um conjunto de outros mais tolerantes, como besouros e percevejos. Com isso, a estabilidade da comunidade evidenciou um efeito “portfólio” da biodiversidade, ou seja, a entrada de espécies compensando o desaparecimento de outras.

“Demonstramos experimentalmente que o funcionamento de ecossistemas aquáticos em ambientes agrícolas pode ser mantido, apesar de práticas danosas, desde que haja espécies tolerantes vindas de fora da plantação para substituir as mais sensíveis. Na pesquisa, usamos como indicador do funcionamento ecossistêmico a produção de biomassa, ou seja, quantos gramas de animais estão sendo observados em cada ecossistema ao longo do tempo. Percebemos que [a produção de biomassa] permaneceu constante até mesmo no canavial. Isso é muito interessante do ponto de vista da discussão dos diversos valores que a biodiversidade tem, entre eles a manutenção de funções ecossistêmicas de um local”, avalia o biólogo Luis Cesar Schiesari, professor da Universidade de São Paulo (USP) e autor correspondente do artigo publicado no Journal of Applied Ecology, uma das mais prestigiadas revistas científicas na área de ecologia.

O trabalho foi conduzido no âmbito de um Projeto Temático vinculado ao Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG) e liderado pelo engenheiro agrônomo Luiz Antonio Martinelli, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da USP. Também recebeu financiamento por meio de um projeto coordenado pelo biólogo Victor Satoru Saito, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Ambos são coautores do artigo.

Sustentabilidade

Estudos anteriores mostraram que esse suprimento de espécies não está disponível em campos agrícolas reais, onde ecossistemas aquáticos têm diversidade bastante empobrecida. Por isso, os cientistas sugerem no artigo agora publicado a inclusão das práticas de manejo para a proteção de brejos, pântanos e lagoas nas bordas de campos agrícolas, que serviriam de provedores de biodiversidade para colonizar poças formadas naturalmente ou artificialmente nessas áreas.

“Esses organismos são benéficos para o próprio cultivo já que, além de retroalimentar o ecossistema, servem de predadores para pragas agrícolas. Insetos e anfíbios colocam ovos nessas poças temporárias, que eclodem em larvas. Elas se alimentam no ambiente aquático e, depois, metamorfoseiam em adultos terrestres. Esses adultos eventualmente morrem no ambiente terrestre, ‘exportando’ a matéria acumulada dentro da poça, inclusive o nitrogênio, o fósforo e o potássio, de volta para a plantação. Essas funções ecossistêmicas satisfazem as premissas da agricultura sustentável e de precisão”, diz Schiesari à Agência FAPESP.

Com a agenda global indicando a crescente necessidade de reduzir impactos ambientais nas cadeias produtivas e mitigar os efeitos das mudanças climáticas para promover o desenvolvimento sustentável, a produção agropecuária e a transição energética (com o uso de fontes limpas e renováveis para combustíveis) têm sido focos de atenção no mundo.

Maior produtor mundial de cana-de-açúcar e um dos principais de etanol, o Brasil vem discutindo há alguns anos a sustentabilidade da cadeia de produção e o custo socioeconômico do uso da terra. De acordo com dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a produção de cana-de-açúcar na safra 2023/24 deve crescer 4,4% em relação a 2022/23, sendo estimada em 637,1 milhões de toneladas.

“Em minha linha de pesquisa busco entender as vias pelas quais as alterações do ambiente por ações humanas impactam a biodiversidade. Especificamente nos últimos 15 anos, tenho procurado compreender as consequências da conversão de hábitats nativos, como florestas e cerrados, para pastagens e a intensificação das pastagens em áreas de plantios agrícolas monoculturais, como soja e cana. Esse processo de conversão e intensificação do ambiente implica alterações estruturais, físicas e químicas”, complementa o biólogo.

As pastagens são o principal uso dado ao solo brasileiro, ocupando 154 milhões de hectares, com presença nos seis biomas, segundo relatório do MapBiomas. A área equivale praticamente a todo o Estado do Amazonas, que tem 156 milhões de hectares.

As etapas

Os cientistas trabalharam em uma área da fazenda experimental da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA), em Brotas, no interior de São Paulo. Dividiram o local em 15 parcelas (plots) de 50 por 50 metros.

Cinco foram mantidas com pastagem extensiva, onde não existe cuidado específico com o solo e o capim cresce naturalmente, de acordo com a fertilidade da área. A mesma quantidade de parcelas foi convertida em pastagem intensiva – com gradagem do solo usando tratores, mistura de calcário para elevar o pH (processo chamado calagem), fertilização e plantio de braquiária, um dos tipos de capim mais usados no país. Tanto na extensiva como na intensiva houve manejo de gado.

Nas outras cinco parcelas, o cultivo foi de cana-de-açúcar, com práticas de manejo semelhantes às utilizadas por produtores no Brasil, incluindo tecnologias e insumos, visando intensificar os resultados. Foram usadas mudas adequadas ao solo e ao clima, além da aplicação de fertilizantes, inseticidas e vinhaça – resíduo obtido após a destilação fracionada do caldo de cana fermentado, para a obtenção do etanol, que promove o crescimento bacteriano e consumo do oxigênio quando lançado em ecossistemas aquáticos.

Foram montados 18 mesocosmos aquáticos, de 4 mil litros de água cada um. Eles são ecossistemas construídos para simular os naturais – no caso, as poças temporárias encontradas dentro de pastagens e plantações no Brasil todo. O monitoramento dos mesocosmos levou em consideração parâmetros físico-químicos, nutrientes, pesticidas, fitoplâncton e a biodiversidade que colonizou espontaneamente o local.

“Nossa pesquisa foi conduzida em uma única estação do ano em um ecossistema modelo inerentemente transitório, isto é, poças temporárias. Estudos futuros devem testar no longo prazo as consequências do uso da terra, explorando efeitos do contexto da paisagem e, portanto, isolamento espacial e limitação de dispersão, na capacidade das comunidades de lagoas para manter a produção de biomassa estável, apesar de práticas de manejo de terras perigosas”, escrevem os cientistas no trabalho.

O artigo Community reorganization stabilizes freshwater ecosystems in intensively managed agricultural fields pode ser lido em: https://besjournals.onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/1365-2664.14423.


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