Há uma ideia recorrente e perigosa de que a floresta amazônica é um organismo autossuficiente, uma espécie de milagre verde que por si só brota, respira, transpira e se mantém. Mas a ciência tem reiteradamente mostrado que esse equilíbrio é delicado, poroso e que pode se romper não com uma explosão, mas com uma sequência de silêncios. Menos chuva aqui, uma onda de calor ali, uma seca mais prolongada. O que parece um evento pontual se soma a outro, e a floresta começa a tossir, a perder o fôlego, a desaprender o ciclo da água.

A floresta que não chove sozinha
Nos últimos 40 anos, a estação seca na Amazônia se esticou em duração e intensidade. A floresta, que antes se apoiava na generosa umidade trazida pelos ventos atlânticos e recirculada pelas próprias árvores por meio da evapotranspiração, tem agora dificuldade de completar esse ciclo vital. A água que sobe das raízes profundas e se espalha pelas folhas antes de retornar à atmosfera já não sobe com tanta facilidade. E quando ela falta, todo o ecossistema vacila.

É essa realidade inquietante que pesquisadores do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) e do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) vêm documentando com precisão quase cirúrgica. O que eles mostram, com dados e medições de campo, é que a Amazônia está sob estresse hídrico, e quando a água falta, tudo mais se compromete: o carbono estocado nas árvores, a resistência ao fogo, a capacidade de regeneração.
A ciência não especula, mede
Durante a 77ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, realizada em Recife, a mesa-redonda sobre desmatamento, queimadas e ponto de não retorno do bioma amazônico foi menos uma discussão e mais um alerta com respaldo técnico. A pesquisadora Liana Anderson, do Cemaden, resumiu com clareza desconcertante: “A água é um elemento vital para entender a Amazônia e pensar sobre seu futuro. O bioma só existe porque tem água.”
E a floresta não depende apenas das chuvas que vêm do oceano. Cerca de metade da água que cai em forma de chuva na região é fruto da própria floresta, da água que as árvores devolvem ao ar. Quando esse sistema falha, não é só o clima local que sofre, as correntes de umidade que abastecem outras regiões do Brasil e da América do Sul também se enfraquecem. É um efeito cascata de grande escala, mas com origem num detalhe sutil: as árvores deixaram de transpirar como antes.
Essa quebra de ciclo é perceptível. Em 2015, 63% da Amazônia registrou estresse hídrico, uma condição em que a vegetação sofre pela escassez de água. No ano seguinte, esse número caiu para 51%, mas voltou a subir em 2023, alcançando novamente 61%. É como se a floresta estivesse oscilando entre períodos de recuperação e recaída, sem conseguir reencontrar o ritmo da saúde plena. E há um detalhe geográfico importante: os extremos estão nas bordas da Amazônia, regiões já pressionadas por atividades humanas e com cobertura vegetal fragmentada.
O carbono escapa pelo chão
Se a água é a vida da floresta, o carbono é sua memória. Guardado nos troncos, galhos e raízes por séculos, ele é também a moeda invisível de equilíbrio climático no planeta. Mas esse estoque, que deveria estar confinado, começa a se perder, dissolvido por temperaturas elevadas e pela morte precoce das árvores.
Pesquisadores do Inpe calcularam que secas severas, como a de 2005, foram responsáveis por perdas de até 100 toneladas de carbono por hectare. E, à medida que o planeta aquece, a floresta parece perder sua capacidade de retenção. “A cada grau de aumento da temperatura, há uma redução de 6% nos estoques de carbono da floresta”, explica o pesquisador Luiz Aragão. O número assusta, mas o que mais preocupa é a lógica por trás dele: mais calor significa mais árvores mortas. Mais árvores mortas, mais madeira no solo. E essa madeira seca é combustível puro para o fogo.
A Amazônia sempre teve fogo, mas não como agora. Incêndios hoje se alastram em áreas antes consideradas protegidas, com intensidade e frequência impensáveis há algumas décadas. A floresta, ao perder sua continuidade vegetal, torna-se mais vulnerável: fragmentada, resseca mais rápido e queima com mais facilidade. O fogo, que antes era exceção, começa a se tornar regra em certos anos e regiões.
E como se não bastasse, o ciclo é vicioso. Uma floresta que queima solta carbono. Ao soltar carbono, ela alimenta o aquecimento global. E, ao aquecer, contribui para mais secas e novos incêndios. O que parecia uma anomalia começa a se configurar como um novo normal. E, nesse novo normal, a floresta perde sua função essencial de reguladora climática.
Os refúgios que ainda resistem
Em meio a esse cenário preocupante, surgem algumas ilhas de resistência. Estudos do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) indicam que nem toda floresta reage da mesma forma às secas. Há áreas, sobretudo aquelas com lençol freático raso que demonstram resiliência notável. Nessas regiões, as raízes das árvores alcançam a água com mais facilidade, mesmo durante os períodos mais críticos. E isso faz toda a diferença.
A pesquisadora Flávia Costa, coordenadora dos estudos, alerta para um viés nas pesquisas: muitos estudos sobre o impacto das mudanças climáticas na Amazônia concentram-se em regiões com lençol freático mais profundo. Isso pode distorcer nossa percepção sobre a vulnerabilidade da floresta como um todo. Se metade da Amazônia repousa sobre lençol raso, e se essas áreas reagem melhor às secas, talvez ainda haja caminhos de adaptação possíveis. Mas é preciso olhar com mais cuidado, com mais diversidade metodológica.

É como se a floresta estivesse tentando nos mostrar onde ainda há esperança. Mas também onde a intervenção humana precisa ser mais criteriosa. Se formos capazes de identificar e preservar essas zonas de resiliência, talvez consigamos desenhar estratégias mais inteligentes para mitigar os efeitos do colapso climático. Não se trata de esperar que a floresta resista sozinha, mas de ajudar a protegê-la onde ela ainda pode lutar.
O futuro que escorre entre os dedos
O que os estudos recentes escancaram, com uma crueza quase desconcertante, é que a Amazônia já entrou num estágio de transição. Não se trata mais de prever um eventual colapso, mas de reconhecer os sinais de um sistema em desequilíbrio que já começou a mudar. O ponto de não retorno, discutido há anos como hipótese, agora ronda como possibilidade palpável.
E se a floresta muda, muda tudo ao redor. A agricultura no Centro-Oeste, os reservatórios do Sudeste, as chuvas no Sul do continente, todos esses sistemas estão, de alguma forma, conectados aos rios voadores que a Amazônia produz. Reduzir a floresta a um problema regional é ignorar sua centralidade na estabilidade do clima sul-americano. É, em última instância, brincar com as estruturas que ainda sustentam a vida como a conhecemos.
Há, claro, um campo aberto para a política e também para a negação. Mas a ciência, com sua linguagem dura e seus gráficos impassíveis, continua a dizer o que precisa ser dito. A floresta não está só aquecendo. Está adoecendo. E uma floresta doente devolve um planeta frágil.
Falta, talvez, coragem para olhar esse quadro e dizer com todas as letras: a Amazônia já está pagando o preço da negligência, e com ela, todos nós.
Fonte: Agência FAPESP









































