Revolução Hídrica Novas Tecnologias Contra o Desperdício de Água

Sensores, fibra óptica, imagens de satélite, robôs, inteligência artificial: o arsenal tecnológico para combater o desperdício de água nas redes de distribuição está em constante expansão. E o empenho se justifica. Um estudo recente do Instituto Trata Brasil, de junho de 2024, revela dados alarmantes: a quantidade de água tratada que se perde no processo de distribuição poderia abastecer 54 milhões de brasileiros por um ano inteiro. Isso significa que, diariamente, mais de 7,6 mil piscinas olímpicas são desperdiçadas, o que equivale a impressionantes 37,8% de todo o líquido tratado. Estes números, baseados no Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, ganham um contorno ainda mais dramático quando consideramos que, atualmente, 32 milhões de pessoas no país não têm acesso a esse recurso essencial.

Um cenário de perdas e metas ambiciosas
No entanto, há uma boa notícia nesse panorama desafiador. Pela primeira vez em seis anos de aumentos consecutivos, o Brasil registra uma diminuição no desperdício de água. Em 2021, as perdas representavam 40,3% do total, indicando um progresso, ainda que tímido. Apesar disso, o país permanece muito aquém da meta estabelecida pelo governo federal, que visa reduzir as perdas para, no máximo, 25% até 2033. “Em qualquer setor industrial, 25% seria um índice de perdas inadmissível. Mesmo assim, a meta é ambiciosa”, avalia a engenheira civil Maria Mercedes Gamboa Medina, do Departamento de Hidráulica e Saneamento da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo EESC USP. A dimensão do desafio fica ainda mais evidente quando se observa que, na maioria dos estados das regiões Norte e Nordeste, o desperdício ultrapassa os 40%, com o Amapá registrando o pior índice, assustadores 71% de perdas.
A pressão do novo Marco Legal do Saneamento
A esperança para reverter esse cenário ganha fôlego com o novo Marco Legal do Saneamento. “O novo Marco Legal do Saneamento exerce grande pressão pelo controle de vazamentos”, comenta o engenheiro mecânico Fabrício César Lobato de Almeida, da Universidade Estadual Paulista Unesp, campus de Bauru. Essa política federal de saneamento básico, estabelecida pela Lei nº 14.026 de 2020, traz consigo diretrizes claras. Dentre elas, destacam se a busca pela sustentabilidade econômica na prestação dos serviços e o forte incentivo a tecnologias que promovam a redução de custos de operação e o aumento da eficiência. É nesse contexto de inovação e exigência que surgem projetos como o Localizador de Vazamento de Superfície LocVas.
Na busca por atingir essas metas desafiadoras, Almeida lidera o projeto LocVas, que recebe apoio do programa Parceria para Inovação Tecnológica Pite, da FAPESP, e é executado em colaboração com a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo Sabesp. O objetivo é ambicioso: desenvolver um sistema de detecção de perdas que funcione pela análise de mudanças nos padrões vibroacústicos das tubulações de água, utilizando medidas realizadas diretamente no solo, logo acima do tubo. A premissa é simples, porém engenhosa: quando há um vazamento, as estruturas subterrâneas vibram em uma faixa de frequência específica, que varia conforme o tipo de solo, o material do tubo e suas dimensões. Os sinais vibroacústicos são captados por meio de sensores instalados na superfície, o que representa um método não invasivo, que dispensa escavações. Os pesquisadores planejam validar a técnica em diferentes tipos de tubos e superfícies, como grama, pedra portuguesa e asfalto, garantindo sua aplicabilidade em diversos ambientes urbanos.
LocVas: Um avanço na detecção vibroacústica
O LocVas representa um aprimoramento de uma técnica já conhecida e em uso, a correlação cruzada, também baseada na captação de sinais vibroacústicos gerados pelo vazamento. “No correlacionador de ruídos, medimos os sinais capturados por sensores instalados em dois pontos das tubulações. Sabendo a velocidade com que o ruído de vazamento se propaga e o atraso entre os sinais medidos, estimamos sua localização”, explica Almeida. A principal diferença entre as duas tecnologias reside na necessidade de contato do correlacionador de ruídos com o duto de água.
Esse contato geralmente ocorre por meio de pontos de acesso para inspeção ou por aberturas escavadas no solo. O LocVas, por sua vez, dispensa esse contato direto com a rede, captando as vibrações à distância. “Um aspecto inovador da técnica é o cálculo estimado da localização do tubo e da posição do vazamento, procedimento ainda não utilizado em dispositivos comerciais”, afirma Almeida. Um artigo detalhando essa tecnologia foi publicado em 2024 na revista Journal of Physics: Conference Series, atestando a relevância científica da inovação.

O projeto da Unesp, iniciado em 2022 com término previsto para 2026, é um ecossistema de pesquisa que envolve desde alunos de iniciação científica até pesquisadores de pós doutorado, e tem sido um fértil terreno para novas vertentes de estudo. Um de seus desdobramentos mais promissores foi o projeto de mestrado do engenheiro mecânico Bruno Cavenaghi, do Programa de Pós graduação em Engenharia Mecânica da Faculdade de Engenharia de Bauru FEB. Sua pesquisa inovadora se baseia no uso de câmeras e técnicas de visão computacional para registrar, no solo, as sutis vibrações dos dutos enterrados. “Posicionamos a câmera junto ao solo, em um ângulo de 10 a 15 graus, para registrar o movimento naquele ponto do terreno. Cada pixel gravado atua como um sensor teórico”, resume o pesquisador, demonstrando a inteligência por trás da abordagem. Em 2024, Cavenaghi foi agraciado com o Prêmio Jovem Profissional da Associação dos Engenheiros da Sabesp AESabesp pelo seu trabalho, apresentado naquele ano no 35º Congresso Nacional de Saneamento e Meio Ambiente, um reconhecimento do impacto de sua contribuição.
Para desenvolver sua pesquisa, Cavenaghi realizou medições em um simulador de ruído de vazamentos criado na universidade. “É o primeiro do mundo”, anuncia Almeida, orgulhoso orientador de Cavenaghi. A bancada de simulação, ele explica, é de suma importância não apenas para o avanço da pesquisa científica, mas também para o treinamento prático de profissionais das empresas de saneamento, preenchendo uma lacuna crítica na formação e capacitação técnica do setor.
Um cardápio tecnológico de soluções
Os métodos acústicos são, de fato, os mais empregados na prospecção de vazamentos. Os mais antigos e simples baseiam se em hastes de escuta e geofones. Em geral, as hastes são utilizadas em uma primeira varredura. Por meio do contato de uma barra metálica em hidrantes e cavaletes – as estruturas que conectam a rede de distribuição com a instalação do imóvel – ou outros pontos da rede, o operador consegue captar as vibrações produzidas pelos vazamentos. Para uma localização mais precisa, entra em cena o geofone, um aparelho que lembra um estetoscópio. Utilizado para “auscultar” o solo, ele amplifica os sinais e requer um operador treinado para fazer a interpretação, dada a complexidade dos ruídos.
A busca por automatizar essa etapa para tornar a detecção de vazamentos mais ágil e eficiente, especialmente em locais que carecem de profissionais qualificados, impulsionou a empresa Stattus4 a criar um sistema inteligente de detecção. Em 2018, essa startup, fundada três anos antes e sediada no Parque Tecnológico de Sorocaba, no interior paulista, desenvolveu, com o apoio do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas Pipe, da FAPESP, o 4Fluid Móvel. Esse equipamento inovador pode ser utilizado mesmo por pessoas com pouca experiência de campo, democratizando o acesso à tecnologia de ponta.
Os ruídos coletados por uma haste de escuta são enviados para um ambiente virtual, ou nuvem, onde um programa baseado em inteligência artificial, utilizando uma vasta base de dados de ruídos previamente armazenados, encarrega se de sua interpretação. “Temos mais de 7 milhões de ruídos catalogados, que ajudam nossa IA [inteligência artificial] a identificar onde há um potencial vazamento. O índice de acerto chega a mais de 80%”, afirma a administradora de empresas Marília Lara, cofundadora e CEO da Stattus4. Dentre os clientes que contratam os serviços da startup estão grandes empresas de saneamento, como Sabesp, Copasa de Minas Gerais, Sanepar do Paraná, e o Grupo Águas do Brasil, que atua em 32 municípios de São Paulo, Minas e Rio de Janeiro, evidenciando a confiança do mercado na solução.
Criada há quatro anos e sediada em São Paulo, a Waterlog também aposta na inteligência artificial para reconhecer sinais sonoros característicos de vazamentos. O engenheiro químico Fernando Loureiro Pecoraro, sócio fundador da empresa, conta que o marco regulatório foi um estímulo fundamental para investir em uma solução tecnológica antivazamento, desenvolvida a partir de conversas contínuas com as concessionárias do setor. Foi assim que nasceu o sistema Iris. “Sua grande vantagem é fazer o monitoramento em tempo real. Instalado no cavalete, o sistema capta os ruídos da rede e identifica a ocorrência de vazamento assim que ele surge. Para localizar o ponto de fuga, é preciso recorrer a outros instrumentos, como geofones”, ressalta Pecoraro, indicando que a tecnologia complementa outros métodos já existentes.
Além do som: Satélites e robôs em ação
Para além dos métodos acústicos, o mercado oferece uma vasta gama de soluções tecnológicas. A escolha da técnica mais adequada é determinada pela relação custo benefício, que varia consideravelmente de acordo com as condições econômicas e tecnológicas locais. O engenheiro civil Cícero Mirabô Rocha, do setor de Desenvolvimento Operacional da Sabesp, revela que é comum receber propostas de diversas empresas. “Primeiro fazemos um teste. Se aprovada, a tecnologia pode entrar no rol de soluções. Mas não há milagre: o que funciona é a combinação de técnicas”, explica Rocha, sublinhando que a eficácia reside na integração de abordagens.
Em abril, a Sabesp começou a testar uma tecnologia de sensoriamento remoto desenvolvida pela israelense Asterra, baseada em imagens de satélite para a prospecção de vazamentos. Por meio da emissão de um feixe de onda que penetra até três metros de profundidade no subsolo, a tecnologia identifica locais com presença de cloro, substância utilizada no tratamento de água. O sensoriamento, associado à inteligência artificial, resulta na produção de imagens que indicam áreas potencialmente encharcadas. Em 50 quilômetros de redes analisadas na Região Metropolitana de São Paulo, foram identificados 81 vazamentos pelas imagens do satélite, enquanto os métodos tradicionais encontraram apenas 14, uma diferença expressiva. “Para a localização exata do vazamento ainda precisamos de técnicas acústicas”, pondera Rocha, enfatizando a complementaridade das ferramentas.
Uma alternativa promissora para fiscalizar o interior de tubulações de grande porte, como as adutoras, que transportam a água das estações de tratamento aos reservatórios de distribuição, é o emprego de robôs. Essa solução é oferecida pela Yadah Robotics, uma empresa de São José dos Campos SP. Fundada em 2015, a empresa desenvolveu quatro modelos de robôs projetados para realizar trabalhos de videoinspeção em tubulações e galerias de esgoto e águas pluviais, com diâmetros que variam de 15 centímetros a dois metros. “Já atendemos prefeituras, companhias de saneamento e indústrias”, informa o engenheiro mecânico Fernando Sato, CEO da empresa, destacando a versatilidade das soluções robóticas.
Da bancada de testes ao mercado: Desafios da inovação nacional
Os robôs da Yadah Robotics, que representam tecnologia nacional, são quase uma exceção no cenário de dispositivos antivazamento em uso no Brasil. A grande maioria das soluções empregadas é projetada no exterior. “Somos dependentes de produtos importados. Costumamos usar um geofone japonês ou um correlacionador inglês”, observa o engenheiro civil Marcelo Kenji Miki, da Diretoria de Tratamento de Esgoto da Sabesp, expondo uma realidade de dependência tecnológica.
Entre 2015 e 2019, Miki, então gerente do Departamento de Execução de Projetos de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação da Sabesp, participou ativamente do projeto de um correlacionador de ruídos nacional. Este, que foi o primeiro da América Latina, surgiu de uma parceria frutífera com a Unesp, sob a coordenação do engenheiro mecânico Michael John Brennan. “Conseguimos estabelecer uma ponte entre a área operacional e a academia. Os pesquisadores escutaram os operadores e vice versa”, conta Miki, ressaltando a importância do diálogo entre diferentes saberes.
O resultado foi um equipamento já patenteado, mais adaptado às condições do solo brasileiro e, notavelmente, cerca de 10 vezes mais barato que o modelo importado. Recentemente, o grupo obteve uma patente internacional que abrange um processamento de sinal inovador, capaz de estimar o atraso do sinal medido, um elemento essencial para a localização precisa do vazamento. Apesar de todo esse avanço, um obstáculo persiste: “O que não conseguimos foi transformar o conhecimento acadêmico em produto”, lamenta Miki, evidenciando o desafio de levar a inovação da pesquisa para o mercado. Almeida, da Unesp, no entanto, mantém a esperança de ver a comercialização do modelo nacional de correlacionador de ruídos. “Estamos retomando esse projeto e já mantivemos conversas com um possível parceiro comercial”, informa, acendendo uma luz sobre a possibilidade de que essa tecnologia nacional, tão promissora, finalmente chegue às mãos de quem mais precisa dela.
Fonte: Pesquisa FAPESP














































