Amazônia e Soja: As Controvérsias que Ecoam Além da Colheita

No coração da maior floresta tropical do planeta, um debate fervoroso pulsa em torno da soja, commodity vital que impulsiona economias e alimenta nações. Um acordo, concebido para harmonizar a produção agrícola com a urgência da conservação ambiental, permanece sob escrutínio. Longe de ser um ponto final, este pacto, que envolve a compra e o financiamento da soja cultivada na Amazônia, é um catalisador de tensões e desconfianças, revelando as profundas dicotomias que permeiam o desenvolvimento na região.
Safra atual da soja
A safra atual de soja projeta um recorde histórico de 169,5 milhões de toneladas, um aumento significativo de 14,7% em relação ao ano anterior, conforme as estimativas da Companhia Nacional de Abastecimento Conab. A produtividade também alcançou um patamar inédito, com um crescimento de 11,2%, atingindo 3.560 quilos por hectare cultivado. Esses resultados são fruto de uma combinação de clima favorável, avanços tecnológicos e uma expansão de 3,2% na área cultivada. Entretanto, embora o cenário seja promissor na lavoura, no campo jurídico a situação é bem distinta.

Produtores, com o respaldo da bancada ruralista no Congresso Nacional, e exportadores, apoiados por ambientalistas, travam disputas no Conselho Administrativo de Defesa Econômica Cade, no Supremo Tribunal Federal STF e na Justiça do Mato Grosso. No cerne desse embate está a moratória da soja, que restringe, para seus signatários, a compra e o financiamento de soja cultivada em áreas do bioma amazônico desmatadas após 2008.
As Raízes da Controvérsia e a Moratória da Soja
O solo amazônico, fértil e vasto, atrai o olhar do agronegócio com sua promessa de produtividade. No entanto, essa promessa carrega consigo um fardo histórico: a expansão da fronteira agrícola muitas vezes se deu às custas da floresta, convertida em pastagens e lavouras. O acordo em questão busca, em tese, mitigar esse impacto. Ele propõe diretrizes para a aquisição de soja proveniente de áreas que não contribuem para o desmatamento ilegal, além de condicionar o financiamento a práticas sustentáveis.
A ideia é louvável, um esforço para canalizar o capital para a produção responsável. Contudo, a execução dessa nobre intenção se choca com realidades complexas, onde interesses divergentes e a própria dinâmica da região testam os limites da boa vontade. O acordo da moratória da soja, de adesão voluntária, emergiu em 2006, como resposta aos protestos de ambientalistas europeus que denunciavam o desmatamento da Amazônia impulsionado pela plantação de soja.
Entre os signatários desse pacto estão a Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais Abiove, a Associação Nacional dos Exportadores de Cereais Anec, empresas de porte como Amaggi, Cargill e Bunge, além do Banco do Brasil e organizações não governamentais ONGs influentes, como o World Wide Fund for Nature WWF e o Greenpeace.
O Impacto da Moratória: Números e Percepções
Os dados compilados pelo MapBiomas e pela WWF revelam que, com a implementação da moratória, a expansão da soja na Amazônia reduziu drasticamente, caindo de 73% para 8% da área total de avanço das plantações, ao comparar os períodos de 1990 a 2007 e de 2008 a 2023. Tiago Reis, especialista em conservação da WWF, enfatiza a eficácia da moratória da soja. Ele aponta que o acordo foi crucial para diminuir o desmatamento, as emissões de carbono e a perda de biodiversidade na Amazônia. Paradoxalmente, a moratória também impulsionou um aumento na produção de soja e abriu novos mercados, especialmente na Europa, onde os consumidores rejeitam produtos associados ao desmatamento.
A Abiove complementa essa perspectiva, afirmando que entre as safras de 2006/2007 e 2022/2023, as exportações de soja originada na Amazônia dispararam em 516%, alcançando 18,5 milhões de toneladas. No mesmo período, a área de cultivo no bioma cresceu 420%, com o plantio ocorrendo em áreas como pastagens degradadas. A associação defende, em nota, que esses resultados demonstram a plena viabilidade de conciliar a expansão agrícola com a conservação ambiental.

O Contraponto dos Produtores e as Batalhas Jurídicas
Na ponta oposta dessa discussão, a Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado do Mato Grosso Aprosoja MT alega que a moratória extrapola os limites do Código Florestal brasileiro. Esse código, é importante lembrar, permite o desmatamento de até 20% do bioma amazônico em propriedades privadas. Na visão da Aprosoja MT, as tradings e agroindústrias que assinaram o tratado, por deterem uma parcela significativa do mercado, acabam por coagir os produtores. Eles seriam forçados a não plantar em áreas legalmente permitidas pela legislação brasileira ou a substituir a soja por culturas menos lucrativas. A organização estima que 65 municípios e 2,7 milhões de hectares são impactados pela iniciativa, gerando perdas anuais de aproximadamente R$ 20 bilhões aos produtores.
No empenho para desmantelar o pacto, a entidade atua em três frentes distintas. A primeira envolve uma ação junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica Cade. A Aprosoja MT argumenta que a moratória permite uma ação coordenada entre as empresas, o que poderia configurar a formação de um cartel de compra. O Cade analisa essa queixa, que se soma a representações semelhantes apresentadas pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil CNA e pela Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados.
No entanto, para André Lima, secretário extraordinário de Controle do Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima MMA, a acusação de formação de cartel carece de fundamento. Ele argumenta que tanto consumidores individuais quanto coletivos, organizados em associações, têm o direito de escolher se desejam adquirir produtos que sejam resultado de desmatamento, mesmo que legal. Essa perspectiva reforça a ideia de que a decisão de aderir ou não à moratória é uma escolha do mercado, e não uma imposição anticompetitiva.
A Questão da Indenização e as Restrições Estaduais
A segunda investida da Aprosoja MT é uma ação civil pública movida em Cuiabá. A associação pleiteia uma indenização de R$ 1 bilhão por danos morais coletivos contra a Abiove, a Anec e 25 tradings e agroindústrias participantes do pacto. Luiz Bier, vice presidente da entidade, explica a motivação dessa ação. Ele afirma que, como todas as grandes empresas que comercializam mais de 90% da soja do Mato Grosso aderiram à moratória, os produtores perdem opções economicamente viáveis. Isso os deixaria com áreas produtivas restritas às terras desmatadas até 2008, sem a possibilidade de utilizar a terra conforme a legislação permite.
A CNA compartilha dessa posição, com André Dobashi, presidente da Comissão Nacional de Cereais, Fibras e Oleaginosas da CNA, declarando em abril que municípios inteiros são economicamente sufocados por restrições que não encontram respaldo no ordenamento jurídico brasileiro.
A terceira frente de combate ao acordo emerge das assembleias legislativas estaduais. Com o apoio de uma parcela dos produtores, os estados de Mato Grosso, Rondônia e Maranhão aprovaram leis que impedem a concessão de benefícios fiscais e terrenos públicos a empresas que participam da moratória da soja, ou de quaisquer outros acordos que “imponham restrições à expansão da atividade agropecuária em áreas não protegidas por legislação ambiental”.
A tributarista Marília Toffolis, sócia do escritório BNT Advogados, alerta para as consequências dessas leis. Ela afirma que, se mantidas, essas legislações inviabilizam a atuação das agroindústrias de exportação, resultando em uma redução média de cerca de 70% no ICMS Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços para essas empresas.
O STF e o Futuro dos Incentivos Fiscais
As novas leis estaduais se tornaram alvo de Ações Diretas de Inconstitucionalidade ADIs movidas por partidos políticos como PCdoB, Psol, PV e Rede Sustentabilidade, além da própria Abiove. Até o momento, o Supremo Tribunal Federal STF se manifestou apenas no caso do Mato Grosso. Em uma liminar concedida em abril, o ministro Flávio Dino reconsiderou uma decisão anterior na qual havia suspendido a restrição aos incentivos fiscais e à utilização de terrenos do estado. Com essa nova decisão, o ministro autorizou, a partir do próximo ano, o fim dos benefícios para as empresas signatárias da moratória.
A decisão de Dino, que ainda depende do voto do Plenário para aprovação definitiva, reafirma que a adesão das empresas à moratória é livre e continua válida. Entretanto, ele ressalta que o poder público não é obrigado a conceder incentivos a empresas que impõem exigências ambientais mais rigorosas do que as estabelecidas pela legislação brasileira. Essa nuance da decisão sugere um ponto de equilíbrio onde a autonomia privada coexiste com a discricionariedade do Estado em suas políticas de incentivo.
A Visão Ambiental e o Compromisso Climático
Cristiane Mazzetti, porta voz do Greenpeace no Brasil, avalia que os ataques à moratória da soja, caso bem sucedidos, criariam um precedente perigoso na luta contra as mudanças climáticas. Ela enfatiza que, para reduzir as emissões, é crucial a participação de todos os setores da sociedade, incluindo o governo, empresas e a sociedade civil. Para Mazzetti, o desmatamento zero é um ponto chave para que o Brasil consiga cumprir os compromissos assumidos em sua NDC Contribuição Nacionalmente Determinada para a COP30, especialmente em um momento em que o país busca protagonismo na agenda climática. Ela argumenta que as mudanças no uso da terra são responsáveis por mais de 40% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa, o que realça a urgência da questão.
André Lima, do MMA, concorda com essa perspectiva. Ele afirma que o país não alcançará sua meta de desmatamento zero apenas com comando, controle, punição e fiscalização do Estado. Para ele, o caminho passa por incentivos e desincentivos de mercado. O secretário também questiona juridicamente o fim dos incentivos fiscais, alegando que, ao punir quem não deseja incentivar o desmatamento, descumpre se um princípio fundamental da ordem econômica e financeira nacional estabelecido no artigo 170 da Constituição.
Lima cita que esse artigo menciona, entre os princípios da ordem econômica, “a defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços”. Essa interpretação sugere que incentivar práticas sustentáveis e desincentivar o desmatamento está em linha com a própria Constituição Federal.
Um Apelo Global e o Futuro das Exportações
Enquanto o impasse jurídico e político continua, um grupo de 60 empresas globais, incluindo nomes como McDonald’s, Danone e a rede de supermercados Tesco, divulgou em julho um manifesto de apoio à moratória da soja. Essa demonstração de solidariedade reforça a pressão internacional por cadeias de suprimentos mais sustentáveis.
Nesse cenário, a Abiove e a Anec expressam receio quanto ao rumo das exportações. Mesmo não sendo diretamente afetadas pelas tarifas de 50% anunciadas pelo governo de Donald Trump, já que o Brasil não vende soja para os Estados Unidos, as associações temem que as vendas para outros mercados possam ser prejudicadas caso a moratória perca sua força. A reputação ambiental do Brasil no cenário global, e a percepção de seus produtos, são fatores cruciais que podem impactar diretamente o fluxo comercial.
O intrincado acordo sobre a soja amazônica é um exemplo emblemático dos desafios complexos que o Brasil enfrenta ao tentar conciliar o desenvolvimento econômico com a preservação de um bioma de importância global. Não há soluções simples nem respostas prontas. A busca por um caminho sustentável exige diálogo contínuo, aprimoramento dos mecanismos de fiscalização e o reconhecimento das múltiplas realidades que coexistem na Amazônia.
Talvez o maior desafio seja construir pontes entre os diferentes atores, superando desconfianças e encontrando terreno comum. Isso implica ouvir as comunidades locais, valorizar seus conhecimentos tradicionais, investir em tecnologias de rastreabilidade e, acima de tudo, priorizar a saúde da floresta como um bem inestimável para a humanidade. O conflito persiste, mas a esperança reside na capacidade de transformar essa tensão em um catalisador para a inovação e para um futuro onde a soja da Amazônia possa ser sinônimo não de desmatamento, mas de prosperidade sustentável.







































