A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) enfrenta, em 2024, um cenário desafiador e complexo. Com mais de cem vagas abertas e atribuições que crescem exponencialmente, a ANP tem nas mãos o importante papel de liderar a regulação de tecnologias emergentes ligadas à transição energética. Isso inclui a regulação do hidrogênio de baixo carbono, biometano, e tecnologias de captura e armazenamento de carbono (CCUS). Contudo, com um orçamento reduzido e um corpo técnico deficitário, a agência encontra-se em um impasse: como poderá assumir novas responsabilidades de forma eficaz se mal consegue atender suas atuais demandas?
Este artigo visa explorar os desafios enfrentados pela ANP, analisando como outros países lidaram com problemas semelhantes e quais soluções poderiam ser aplicadas no Brasil para fortalecer a agência e garantir que a transição energética avance de forma estruturada.
O Cenário Atual da ANP
Nos últimos anos, a ANP viu seu papel se expandir para além do petróleo e gás, passando a incluir o biodiesel (desde 2005), o gás natural (em 2021), e agora o hidrogênio de baixo carbono, o biometano e as tecnologias de CCUS. Contudo, conforme destaca o diretor-geral da agência, Rodolfo Saboia, a infraestrutura e os recursos disponíveis para a ANP não acompanharam esse crescimento. A agência conta atualmente com 597 servidores ativos, dos quais 51 estão lotados em outros órgãos, e há 132 cargos vagos que deveriam estar preenchidos por lei.
Em termos de orçamento, a situação é ainda mais preocupante. A ANP opera com menos de um terço do orçamento que tinha em 2013, e o valor alocado para suas operações representa apenas 18% do valor daquele ano, ajustado pela inflação. Com recursos limitados e um déficit de pessoal, a capacidade da agência de regular, fiscalizar e implementar novas tecnologias é severamente comprometida.
A transição energética, que inclui o desenvolvimento de fontes de energia limpa como o hidrogênio verde, requer não só políticas bem delineadas, mas também uma estrutura de regulação robusta, o que a ANP, em sua forma atual, parece incapaz de fornecer. A situação é alarmante, pois sem uma agência reguladora adequadamente equipada, o Brasil corre o risco de perder a competitividade na corrida global por tecnologias de energia limpa.
Comparação Internacional: Exemplos de Soluções Bem-Sucedidas
Diversos países enfrentaram desafios semelhantes ao Brasil em termos de governança da transição energética. Olhar para essas experiências internacionais pode fornecer insights valiosos sobre como o Brasil poderia fortalecer a ANP e garantir o sucesso da transição para uma matriz energética mais sustentável.
Alemanha: A Ascensão da Agência Federal de Redes (Bundesnetzagentur)
A Alemanha é frequentemente citada como um dos líderes globais em transição energética, graças a políticas robustas e à criação de agências específicas para lidar com cada setor. A Bundesnetzagentur, ou Agência Federal de Redes, desempenha um papel crucial na regulação de eletricidade, gás, telecomunicações, correios e ferrovias. Em particular, no setor energético, a agência tem sido fundamental para gerenciar a expansão das energias renováveis e a integração de tecnologias como o hidrogênio verde.
Ao contrário da ANP, que sofre com a escassez de pessoal e orçamento, a Bundesnetzagentur teve um aumento progressivo em seus recursos à medida que suas responsabilidades cresceram. O governo alemão reconheceu que, para cumprir as metas ambiciosas de redução de emissões e expansão de energias renováveis, era necessário investir significativamente na agência reguladora.
Além disso, a Alemanha investiu pesadamente em capacitação técnica e pesquisa. A Bundesnetzagentur colabora com universidades e institutos de pesquisa para garantir que esteja na vanguarda das inovações tecnológicas. Isso inclui a criação de centros de excelência para o desenvolvimento de normas e testes de novas tecnologias, como o hidrogênio verde. Essa abordagem poderia ser um modelo para o Brasil, onde a ANP também precisa de mais recursos para capacitação e aquisição de equipamentos laboratoriais.
Reino Unido: Ofgem e o Apoio à Inovação no Setor Energético
Outro exemplo relevante é o da Ofgem, a agência reguladora de energia do Reino Unido. A Ofgem foi responsável por facilitar a transição do Reino Unido para um sistema energético mais sustentável, regulando mercados e promovendo inovações tecnológicas. O Reino Unido lançou programas de financiamento para incentivar a inovação no setor energético, como o Low Carbon Networks Fund, que permite que as empresas de energia testem novas tecnologias para descarbonizar a matriz energética.
A Ofgem também desempenha um papel crucial em garantir a segurança e confiabilidade da rede de energia, mesmo com o aumento da participação de fontes renováveis intermitentes, como solar e eólica. Para isso, a agência teve que se adaptar rapidamente às mudanças tecnológicas e de mercado, o que foi possível graças a investimentos em pessoal e infraestrutura.
O sucesso da Ofgem em lidar com a transição energética é um exemplo de como uma agência reguladora pode liderar esse processo. A chave foi o apoio financeiro e institucional, que permitiu que a Ofgem expandisse sua atuação para além das atividades regulatórias tradicionais, incluindo a promoção de inovação tecnológica e a criação de um ambiente regulatório que incentive investimentos em novas fontes de energia.
Estados Unidos: A Experiência da FERC
Nos Estados Unidos, a Comissão Federal de Regulação de Energia (FERC) tem sido a principal responsável pela regulação de mercados de eletricidade e gás natural, além de supervisionar as iniciativas de modernização do sistema energético. Nos últimos anos, a FERC se voltou para as questões relacionadas às mudanças climáticas, incorporando a transição para energias renováveis e o uso de tecnologias como o hidrogênio e a captura de carbono.
A FERC opera com um modelo que pode servir de inspiração para a ANP: um processo regulatório transparente e colaborativo, que envolve tanto o governo federal quanto os estados. Nos EUA, a regulação energética é altamente descentralizada, com estados desempenhando papéis cruciais na implementação de políticas locais. No entanto, a FERC garante uma coordenação nacional e estabelece diretrizes que os estados devem seguir, criando um ambiente harmonizado para o desenvolvimento de novas tecnologias.
Outra característica importante da FERC é sua autonomia orçamentária e de pessoal. A comissão tem autoridade para ajustar suas taxas e receitas de acordo com as necessidades regulatórias, o que lhe permite contratar especialistas e adquirir as tecnologias necessárias para realizar seu trabalho de maneira eficaz.
Noruega: A Agência de Petróleo e Energia (NPD) e o Modelo de Cooperação com o Setor Privado
Na Noruega, a Agência de Petróleo e Energia (NPD) é um exemplo de como a cooperação entre o setor público e o privado pode ser essencial para o sucesso na regulação de novos setores energéticos. A Noruega tem uma longa história de dependência do petróleo, mas nos últimos anos, o país tem se voltado para a diversificação da matriz energética, com grande foco em energias renováveis e tecnologias de captura e armazenamento de carbono (CCUS).
A NPD trabalha em estreita colaboração com empresas de tecnologia e universidades para desenvolver normas técnicas e realizar testes para a implementação de CCUS em larga escala. Ao contrário da ANP, que enfrenta dificuldades para preencher cargos e garantir investimentos, a NPD recebe suporte contínuo do governo norueguês e do setor privado, que reconhecem a importância estratégica dessas tecnologias para o futuro da economia do país.
A cooperação público-privada da Noruega é uma estratégia que o Brasil poderia adotar para fortalecer a ANP. Estabelecer parcerias com empresas que têm interesse no desenvolvimento do hidrogênio verde, biometano e CCUS poderia alavancar o desenvolvimento dessas tecnologias no Brasil, ao mesmo tempo em que proporciona à ANP o apoio técnico e financeiro necessário.
Soluções para o Fortalecimento da ANP
Com base nas lições aprendidas em outros países, várias soluções poderiam ser implementadas para fortalecer a ANP e permitir que a agência desempenhe um papel mais eficaz na regulação da transição energética.
Aumento do Orçamento e Autonomia Financeira
Uma das principais soluções é o aumento do orçamento da ANP. Sem recursos adequados, é impossível que a agência cumpra suas funções atuais, muito menos assuma novas responsabilidades. Um modelo a ser considerado é o dos Estados Unidos, onde a FERC tem a capacidade de ajustar suas taxas e receitas de acordo com suas necessidades operacionais. Isso daria à ANP mais flexibilidade para contratar pessoal e adquirir os equipamentos necessários para realizar seu trabalho de forma eficaz.
Parcerias com o Setor Privado e Instituições de Pesquisa
Seguindo o exemplo da Noruega, a ANP poderia se beneficiar da criação de parcerias com o setor privado e com universidades. Essas parcerias poderiam fornecer apoio técnico e financeiro para a implementação de novas tecnologias, como CCUS e hidrogênio verde. Além disso, essas colaborações poderiam ajudar a ANP a desenvolver as normas técnicas necessárias para regular esses setores de forma eficaz.
Capacitação Técnica
Assim como a Bundesnetzagentur da Alemanha, a ANP precisa investir na capacitação de seu corpo técnico. A transição energética envolve tecnologias complexas, e a regulação desses setores requer conhecimentos especializados. Para isso, seria necessário não só contratar mais profissionais, mas também oferecer treinamentos e estabelecer parcerias com institutos de pesquisa e universidades.
Transparência e Participação Pública
A exemplo da FERC nos Estados Unidos, a ANP poderia se beneficiar de um processo regulatório mais transparente e colaborativo, que envolva o governo federal, estados e o setor privado. Isso ajudaria a criar um ambiente regulatório mais harmonizado e favorável ao desenvolvimento de novas tecnologias.
Promoção da Inovação
A ANP também poderia adotar uma abordagem mais ativa para promover a inovação tecnológica, como faz a Ofgem no Reino Unido. Isso incluiria o desenvolvimento de programas de financiamento para projetos-piloto de hidrogênio verde, biometano e CCUS, permitindo que empresas testem novas tecnologias e acelerem sua implementação no mercado.
A ANP desempenha um papel crucial na transição energética do Brasil, mas para cumprir esse papel de forma eficaz, a agência precisa de mais recursos, pessoal e capacitação. A experiência de outros países mostra que uma estrutura regulatória robusta é essencial para o sucesso da transição para uma matriz energética mais sustentável. O fortalecimento da ANP, com aumento do orçamento, parcerias público-privadas, e capacitação técnica, é fundamental para garantir que o Brasil aproveite todo o seu potencial na corrida global por energias limpas.