Nos últimos vinte anos, um novo produto financeiro chamado créditos de carbono tornou-se uma das ferramentas mais importantes do mundo na luta contra as mudanças climáticas. Empresas e organizações que buscam compensar suas emissões de carbono gastaram bilhões de dólares nessa iniciativa.
A floresta amazônica, devido ao seu tamanho e importância ambiental global, tem atraído cada vez mais interessados em créditos de carbono. Aqui, essas pessoas são chamadas de “cowboys de carbono“.
Eles lançaram projetos de preservação em toda a região, gerando créditos de carbono que valem centenas de milhões de dólares. Esses créditos, por sua vez, foram comprados por algumas das maiores corporações do mundo. Os projetos ajudaram a transformar a Amazônia brasileira em um epicentro de uma indústria global amplamente sem regulamentação, com vendas de quase US$ 11 bilhões, segundo pesquisas de mercado.
Muitas dessas empreitadas privadas repetidamente e, segundo autoridades, ilegalmente reivindicaram terras publicamente protegidas, gerando enormes lucros com territórios sobre os quais não têm direito legal e não compartilhando a receita com aqueles que protegiam ou viviam na terra. O uso dessas terras para vender créditos também contribui pouco para a redução das emissões de carbono.
A frequência com que esses projetos utilizam propriedade pública, a quantidade de terra envolvida e o valor dos créditos gerados não haviam sido relatados anteriormente. Mais da metade de todos os projetos de preservação de florestas de créditos de carbono na Amazônia brasileira sobrepunham-se a territórios públicos.
A quantidade de terras públicas reivindicadas por essas empreitadas privadas era de mais de 202 mil quilômetros quadrados, seis vezes o tamanho de Maryland. As empresas que compraram os créditos de carbono dessas empreitadas privadas incluíam grandes companhias internacionais: Netflix, Air France, Delta Air Lines, Salesforce, PricewaterhouseCoopers, Airbnb, Takeda Pharmaceutical Co., Boston Consulting Group, Spotify, Boeing.
A análise baseia-se na revisão de milhares de páginas de registros corporativos e judiciais, entrevistas com dezenas de pessoas pela floresta e uma análise geoespacial dos projetos de créditos de carbono na Amazônia. Ao realizar a análise geoespacial, a mais extensa até o momento, foram comparados os limites de 101 projetos de preservação privada submetidos a duas certificadoras internacionais, Verra e Cercarbono, que operam no centro do mercado global de créditos de carbono, com mapas governamentais de áreas protegidas publicamente na Amazônia. (Quatro empreitadas foram eliminadas da análise porque seus arquivos de mapas apresentaram falhas.)
A maioria dos projetos ainda está na fila para ser certificada. Mas 35 foram certificados. E entre esses, a maioria (29), sobrepôs-se a terras públicas. As empreitadas geraram até agora mais de 80 milhões de créditos de carbono, dos quais pelo menos 30 milhões já foram vendidos.
Não está claro quanto foi ganho nas vendas iniciais, pois informações detalhadas das transações não estão disponíveis publicamente. Mas seu valor estimado na época em que os compradores os utilizaram para compensar emissões foi de mais de US$ 212 milhões, de acordo com uma análise baseada nas taxas de mercado anuais.
Não foram encontradas evidências de que os compradores agiram de forma inadequada. Nove empresas identificadas neste artigo responderam a um pedido de comentário, dizendo que buscam garantir que os créditos de carbono que compram sejam de alta qualidade ou que estavam reduzindo seu uso de créditos.
Em um país sem leis regulando o comércio de créditos de carbono, as empreitadas privadas frequentemente avançam sem revisão governamental. Foram identificados apenas dois projetos que receberam autorização do governo. Questionados sobre o assunto, vários proprietários de projetos contestaram a precisão dos mapas governamentais usados na análise do Post.
Autoridades do Brasil
As autoridades brasileiras estão começando a investigar. Três projetos foram alvo do mês passado pela polícia federal, que emitiu cinco mandados de prisão e alegou que quase duas dúzias de empresas haviam conspirado para ganhar indevidamente quase US$ 35 milhões em vendas de créditos de carbono.
Neste mercado global opaco, alguns projetos ganham créditos de carbono aumentando o uso de energias renováveis. Outros reciclam resíduos ou plantam árvores ou melhoram práticas agrícolas. Mas na Amazônia brasileira, a abordagem que tem sido mais popular e lucrativa, é conhecida como projetos de “desmatamento evitado”. Esses projetos ganham créditos essencialmente mantendo o status quo, preservando florestas consideradas em risco.
Não foram exposta somente falhas no sistema global de verificação de tais empreitadas, mas também questiona o valor de alguns projetos no combate ao aquecimento global. Grande parte da Amazônia brasileira é protegida por um escudo verde de terras publicamente protegidas, que são as florestas nacionais, territórios indígenas, reservas federais e estaduais. Mas quando empresas poluidoras compram créditos gerados pela suposta preservação de terras que já eram protegidas, seu dinheiro contribui com quase nada.
“O sistema é muito manipulável”, disse Joseph Romm, pesquisador climático da Universidade da Pensilvânia. “E a vítima é o planeta e toda a humanidade que sofre porque não estamos reduzindo as emissões, mas fingindo que estamos.”
Abrangendo a Amazônia
Um dos maiores atores na corrida pelos créditos de carbono na Amazônia é o empresário americano Michael Greene, um ousado habitante do meio-oeste dado a declarações audaciosas. “Eu sou o maior desenvolvedor de projetos de créditos de carbono (preservação) na América Latina”, vangloriou-se em uma carta de 2022 a autoridades de uma cidade amazônica. “Eu sou tão grande que meu negócio é 50% do mercado de créditos de carbono do Brasil.” No LinkedIn, sua empresa, Agfor, descreveu-se como o maior desenvolvedor mundial de créditos de carbono de preservação florestal.
Foram identificados 19 projetos supervisionados por Greene e suas empresas. Todos se sobrepuseram a terras públicas, parcial ou completamente, de acordo com uma análise geoespacial. Dez foram certificados, ganhando 45 milhões de créditos de carbono. Os projetos abrangem a Amazônia, mas vários foram centrados na pobre cidade ribeirinha de Portel.
A algumas horas do movimentado centro da cidade, descendo rios que correm largos e claros, registros corporativos mostram que ele e suas empresas supervisionaram quatro projetos distintos que se sobrepuseram esmagadoramente a terras públicas, grande parte das quais havia sido destinada a comunidades ribeirinhas pobres. Os créditos vendidos pelos projetos, é baseado nas taxas de mercado de créditos de carbono, tiveram um valor final de US$ 87 milhões.
Nenhum dos ribeirinhos recebeu qualquer dinheiro, disseram as autoridades brasileiras. “Eles nos roubaram”, disse Maria de Nazaré Oliveira Sousa, 48, que vive em terras concedidas à sua comunidade pelo estado do Pará.
Em resposta a processos judiciais movidos por autoridades estaduais alegando que ele usou indevidamente terras públicas, Greene negou todas as irregularidades em documentos apresentados ao tribunal estadual do Pará, alegou que os projetos não foram lucrativos e disse que beneficiaram as comunidades locais. Ele cancelou uma entrevista agendada para este artigo e não respondeu a uma lista de perguntas detalhadas enviadas por e-mail sobre suas práticas comerciais na Amazônia.
Alegando que ex-funcionários descontentes forneceram um retrato impreciso de seu trabalho, Greene emitiu uma negação abrangente. “Você está dando crédito (sic) e uma plataforma para grupos que querem me desacreditar e roubar meu negócio”, escreveu por um e-mail. “Tudo o que você ouviu até agora é falso.”
O campo de testes do mundo
Para os defensores, os projetos de desmatamento evitado fornecem uma resposta de mercado a um enigma que há muito perturbava os ativistas climáticos: como tornar a conservação lucrativa. Mas para os críticos, os projetos são muito especulativos e suscetíveis a exageros. Como alguém pode provar, perguntam os céticos, que uma floresta teria sido derrubada se não fosse pelo projeto?
O campo de testes do mundo tem sido a floresta amazônica, que armazena cerca de 123 bilhões de toneladas de carbono. Em 2005, cientistas climáticos brasileiros foram dos primeiros a propor a ideia de um comércio de créditos de carbono como uma maneira de preservar uma região que já perdeu quase um quinto de sua floresta, muitas vezes desmatada para a criação de gado, e que está rapidamente se aproximando do que os cientistas temem ser seu ponto de inflexão.
Apesar das implicações globais, o Brasil não conseguiu criar um sistema nacional para regular o rápido crescimento das iniciativas privadas de preservação. Esse trabalho, em vez disso, caiu sobre dois registros internacionais, a Verra, com sede em Washington, e a organização colombiana Cercarbono, que certificam créditos de carbono para venda mesmo sem aprovação governamental.
O porta-voz da Verra, Joel Finkelstein, disse que determinar a propriedade da terra na Amazônia pode ser difícil e que a organização instou os auditores terceirizados, dos quais a Verra depende, a identificar qualquer sobreposição com terras públicas. A Verra também suspendeu vários projetos, incluindo três em Portel, devido a alegações de uso ilegal de terras públicas. “Esta é a floresta mais importante do planeta que precisamos encontrar uma maneira de salvar”, disse ele. “Mas é necessário um sistema funcional e respeitado de governança da terra.”