Na periferia da Amazônia, onde o verde resiste entre os corredores industriais, comunidades quilombolas do Pará seguem na luta por justiça. Após anos denunciando violações ambientais, contaminação e doenças decorrentes das operações da mineradora Norsk Hydro, os moradores de Barcarena e do Vale do Acará decidiram levar suas reivindicações para outro continente.
Desde o início deste mês, um tribunal na Holanda julga a responsabilidade da multinacional norueguesa por danos socioambientais em território brasileiro.

A expectativa é grande. A audiência realizada em 12 de março foi acompanhada por moradores por videoconferência, em uma sala montada em Belém. Para as lideranças locais, o caso pode marcar um precedente histórico: o reconhecimento internacional de que corporações globais não estão acima dos direitos das comunidades tradicionais.
Da contaminação ao tribunal
A ação judicial foi movida em 2021 pela Associação Cainquiama, organização que representa caboclos, indígenas e quilombolas da Amazônia, junto a nove moradores de Barcarena. Eles acusam a Norsk Hydro de despejar resíduos tóxicos desde 2002 e, especialmente, de ter sido responsável por um vazamento em 2018 na refinaria Alunorte, que contaminou rios, igarapés e lençóis freáticos da região.
À época, laudos do Instituto Evandro Chagas detectaram a presença de metais pesados como chumbo, arsênio e mercúrio nas águas. Os efeitos foram sentidos de forma imediata: peixes mortos, animais doentes, dificuldades respiratórias, surtos de doenças cutâneas e gastrointestinais. Com o passar dos anos, as denúncias se acumularam. Casos de câncer, perda de memória e problemas neurológicos se tornaram frequentes nos relatos dos moradores.
“Tem gente morrendo de câncer a cada semana. Crianças sem ar, idosos esquecendo das coisas, jovens com dores no corpo inteiro”, relata Maria do Socorro Nerys da Costa, conhecida como Socorro do Burajuba, presidenta da Cainquiama e uma das principais vozes na denúncia internacional.
A resposta brasileira: insuficiente
Apesar das evidências técnicas e da pressão popular, as medidas tomadas no Brasil foram consideradas tímidas pelas comunidades atingidas. Em 2018, a empresa firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público Federal, comprometendo-se a fornecer água potável, assistência médica e compensações financeiras às famílias afetadas. Promessas que, segundo os moradores, nunca se concretizaram de forma plena.
Em 2024, a Justiça Federal condenou a Hydro a pagar R$ 100 milhões em indenizações e suspendeu sua capacidade de fechar contratos com o poder público por dez anos. No entanto, essa decisão chegou tarde para muitos dos afetados, e a execução das penalidades ainda enfrenta entraves burocráticos.
“Esse dinheiro não chegou para nós. Continuamos bebendo água contaminada, não temos atendimento médico especializado, e a empresa continua operando como se nada tivesse acontecido”, denuncia Socorro.
Diante da frustração com o sistema jurídico brasileiro, a saída foi buscar amparo fora do país. O tribunal de Roterdã, na Holanda, aceitou julgar o caso ao reconhecer a legitimidade dos autores e a conexão direta com os acionistas da empresa, sediados naquele país.
Uma ação com peso global
A ação é liderada por dois escritórios com histórico em litígios internacionais: o holandês Lemstra Van der Korst e o Pogust Goodhead, responsável por conduzir o processo coletivo contra a BHP pelo desastre de Mariana (MG). Em termos legais, o caso marca um esforço de responsabilização extraterritorial, uma tendência crescente em direitos humanos e direito ambiental, onde empresas podem ser julgadas fora de suas áreas de operação quando violam tratados ou leis internacionais.
Para os defensores das comunidades, a atuação da Hydro fere, entre outras normas, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante o direito à consulta prévia, livre e informada a povos indígenas e tribais.
“O que está em julgamento é mais do que um crime ambiental. É o modelo de exploração predatória que se impôs à Amazônia e às suas populações. A justiça holandesa tem a chance de dizer ao mundo que isso não pode mais ser tolerado”, diz um dos advogados envolvidos no processo.
A sentença está prevista para setembro de 2025, e até lá, três audiências serão realizadas. A primeira, já concluída, teve boa receptividade por parte da juíza responsável, que, segundo observadores, mostrou firmeza e empatia com os depoimentos das vítimas.
Expansão de violações: o caso do Vale do Acará
Enquanto os moradores de Barcarena buscam justiça na Europa, a tensão cresce em outro ponto do Pará: o Vale do Acará. Quilombolas, indígenas e ribeirinhos da região denunciam a expansão ilegal da infraestrutura da Hydro, que estaria promovendo desmatamento, assoreamento de igarapés e instalação de minerodutos sem a devida consulta às comunidades.
Segundo lideranças locais, a empresa teria obtido uma liminar judicial que lhe concede acesso irrestrito às áreas em disputa, desrespeitando o direito à consulta prévia. A reação das comunidades foi imediata: bloqueios às atividades da empresa e manifestações públicas. Em resposta, forças de segurança foram enviadas ao local, o que gerou confronto entre a Polícia Militar e os indígenas Turiwara.
Um manifesto divulgado por 600 famílias do Vale do Acará denuncia “a tentativa de silenciamento e criminalização das lideranças comunitárias”, além de “um rastro de destruição deixado pela Hydro, que mina a possibilidade de uma transição energética justa”.
A empresa, por sua vez, nega qualquer ilegalidade. Em nota oficial, afirma que “as atividades de manutenção do mineroduto respeitam todas as normativas ambientais” e que “as faixas de servidão utilizadas não estão situadas em território indígena”.
Além do alumínio: impactos sociais e invisibilização
A Norsk Hydro é uma das maiores produtoras mundiais de alumínio, e o Pará é um dos maiores polos de extração de bauxita, matéria-prima do metal. O discurso oficial da empresa enfatiza a importância do alumínio para a transição energética, apontando seu uso em painéis solares, carros elétricos e estruturas sustentáveis. Mas, na outra ponta da cadeia produtiva, os efeitos são tudo menos sustentáveis.
No rastro do progresso, as comunidades quilombolas convivem com rios poluídos, perdas culturais, doenças e a violação de direitos constitucionais. O modelo de desenvolvimento baseado na mineração, argumentam os movimentos sociais, mantém estruturas coloniais de exploração.
“Se o alumínio é o metal do futuro, que futuro é esse que ele está construindo para os povos da Amazônia?”, questiona Josias Santos, liderança quilombola do Alto Acará.
A pergunta ecoa cada vez mais alto nos tribunais internacionais, em parlamentos e fóruns sobre justiça climática. A presença da Noruega como principal acionista da Hydro coloca o país europeu sob os holofotes, uma vez que se apresenta ao mundo como modelo de sustentabilidade e direitos humanos.
O que está em jogo
Mais do que uma indenização, o julgamento da Hydro pode ser um divisor de águas na luta dos povos tradicionais da Amazônia. A decisão da corte holandesa será acompanhada por movimentos sociais, ativistas ambientais e juristas de todo o mundo. A mensagem que será enviada a outras multinacionais pode ser decisiva: ou respeitam os direitos das comunidades e o meio ambiente, ou enfrentarão as consequências.
Enquanto isso, nas margens do rio Murucupi, onde as águas seguem turvas e pesadas, a esperança permanece. E resiste. Mesmo em um continente distante, os quilombolas do Pará aguardam por justiça – porque, por aqui, ela ainda não chegou.
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