O segredo gelado do Atlântico: o enfraquecimento das correntes que sustentam o clima global


No meio do Atlântico Norte, entre Groenlândia e a costa europeia, existe um “ponto frio” persistente que há mais de um século intriga cientistas. Enquanto o planeta aquece, essa mancha de águas geladas insiste em permanecer, como um paradoxo climático que desafia explicações fáceis. Agora, um estudo abrangente com mais de cem anos de registros de temperatura e salinidade do oceano aponta para a verdadeira origem desse enigma: o enfraquecimento da Circulação Meridional de Revolvimento do Atlântico (AMOC, na sigla em inglês).

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A AMOC é um vasto sistema de correntes que funciona como um motor térmico planetário. Ele transporta águas quentes das regiões tropicais em direção ao norte, onde se resfriam, afundam e retornam em correntes profundas. Esse mecanismo distribui calor pelo globo, equilibra o clima do Hemisfério Norte e influencia diretamente padrões de chuva, tempestades e ecossistemas marinhos.

Um sistema em declínio

Pesquisadores analisaram um século de observações coletadas em diferentes expedições e bancos de dados oceanográficos. O resultado foi contundente: somente modelos que incorporavam o enfraquecimento progressivo da AMOC conseguiam reproduzir o comportamento da mancha fria ao sul da Groenlândia. Os modelos que mantinham a circulação estável ou robusta falhavam em explicar a anomalia.

Em outras palavras, o “sintoma” desse resfriamento localizado não é um detalhe isolado, mas o reflexo direto de um colapso gradual no sistema de correntes oceânicas que mantém o equilíbrio climático do Atlântico.

O estudo mostra que essa mudança não se limita às águas geladas da Groenlândia. O enfraquecimento da AMOC carrega implicações globais. Na Europa, pode alterar o regime de chuvas, intensificando secas em algumas regiões e enchentes em outras. Na África Ocidental, a circulação influencia diretamente a intensidade da monção do Sahel, crucial para a agricultura e a segurança alimentar de milhões de pessoas.

Nos oceanos, ecossistemas marinhos também estão em risco. Correntes que transportam nutrientes e oxigênio sofrem alterações, afetando a biodiversidade e a pesca em larga escala. Além disso, a AMOC tem papel central no nível do mar, sua desaceleração pode acelerar a elevação nas costas do Atlântico, em especial no leste dos Estados Unidos.

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Tendência da temperatura da superfície do mar Atlântico entre 1900 e 2005 para a média de seis conjuntos de dados de observação. Crédito: Kai-Yuan Li/UCR

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A falha dos modelos climáticos

Um dos pontos mais preocupantes levantados pela pesquisa é a constatação de que muitos modelos climáticos globais, inclusive os usados pelo IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), subestimaram a intensidade do enfraquecimento da AMOC. Isso significa que previsões de longo prazo sobre o clima no Atlântico Norte e adjacências podem estar excessivamente otimistas, ignorando a real magnitude da mudança em curso.

A descoberta reforça a urgência de atualizar os modelos com base em séries históricas mais amplas, como as utilizadas neste estudo. Só assim será possível prever com mais precisão os impactos que já se desenham no horizonte.

Embora colapsos totais da AMOC tenham ocorrido em períodos glaciais do passado, essa é a primeira vez que os cientistas observam sinais consistentes de enfraquecimento em plena era moderna. O fenômeno funciona como um “relógio climático”: lento, mas decisivo. Quanto mais a circulação perde força, mais os padrões globais de clima se desestabilizam, aumentando os riscos de extremos meteorológicos.

A pesquisa não apenas resolve um enigma que intrigava oceanógrafos há décadas, mas também soa um alarme. O Atlântico está mudando silenciosamente, e suas correntes — antes vistas como forças estáveis e imutáveis — já não são garantias de equilíbrio.

A mancha fria ao sul da Groenlândia, que parecia apenas uma anomalia curiosa nos mapas, é na verdade o sinal visível de uma transformação profunda, com consequências que podem se espalhar por todo o planeta.