Entre as serras e veredas do Vale do Jequitinhonha, no nordeste de Minas Gerais, o brilho metálico do lítio contrasta com a poeira que cobre as casas da comunidade rural Piauí Poço Dantas. Ali, a poucos quilômetros da BR-367, o som das britadeiras e caminhões não cessa nem de dia nem de noite. “O barulho é constante, o ar está cheio de poeira e o nosso córrego vem sendo assoreado pelos rejeitos”, relata a pedagoga Ana Cláudia Gomes de Souza, moradora do distrito de Itinga.
A paisagem, antes marcada por plantações e matas nativas, agora abriga crateras abertas para atender à corrida global pelos chamados minerais críticos — insumos considerados estratégicos para a transição energética e o desenvolvimento tecnológico. O lítio, usado na produção de baterias, carros elétricos e sistemas de energia renovável, tornou-se o novo símbolo da disputa entre promessas de prosperidade e os impactos ambientais e sociais sentidos pelas comunidades locais.
A corrida pelo “ouro branco”
O Brasil entrou definitivamente no mapa mundial do lítio após 2023, quando começaram as exportações do mineral em larga escala. O impulso veio com a entrada de empresas multinacionais no chamado Distrito Pegmatítico de Araçuaí, região que concentra algumas das maiores reservas brasileiras.
Entre as companhias em operação está a canadense Sigma Lithium, responsável pela Mina Grota do Cirilo-Xuxa, em Itinga. Diferentemente da tradicional Companhia Brasileira de Lítio (CBL), que atua no subsolo desde a década de 1990, a Sigma adotou um modelo de mineração a céu aberto — o que, segundo moradores, intensificou o barulho e a poeira sobre as comunidades vizinhas.
O aumento da produção foi expressivo: de acordo com a Agência Nacional de Mineração (ANM), a extração de lítio cresceu 83,6% em 2023, impulsionando a arrecadação de royalties da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM) para R$ 55 milhões. Ainda assim, moradores afirmam que os recursos não se traduziram em melhorias perceptíveis.
Impactos sociais e ambientais
Na Terra Indígena Cinta Vermelha de Jundiba, próxima à mina da Sigma, a liderança Uakyrê Pankararu-Pataxó descreve um cotidiano de conflitos e adoecimento. “Há muita poeira, muita gente com problema respiratório, e as máquinas fazem barulho a noite inteira. As mulheres também sofrem com o assédio de trabalhadores de fora”, conta.
Além dos danos ambientais, como o assoreamento de rios e a contaminação do ar, Uakyrê denuncia o apagamento cultural e identitário provocado pela expansão minerária. “As empresas tentam fazer o povo duvidar da nossa presença. Dizem que aqui não tem indígena, que somos empecilho para o desenvolvimento. Mas o próprio nome Vale do Jequitinhonha é indígena”, afirma.

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O projeto do governo mineiro
Em 2023, o Governo de Minas Gerais lançou o programa Vale do Lítio, voltado a atrair investimentos e estruturar a cadeia produtiva do mineral. Segundo a Secretaria de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (Sede), o programa já mobilizou R$ 6,3 bilhões em investimentos e criou quase 4.900 empregos diretos.
Os municípios prioritários, como Araçuaí e Itinga, registraram aumento na arrecadação de CFEM — de R$ 7,2 milhões para R$ 21,6 milhões em um ano — e no recolhimento de impostos como ISS e ICMS. O governo estadual também cita ações de qualificação profissional por meio do programa Minas Forma, em parceria com o Senai-MG.
Ainda assim, a população questiona a aplicação dos recursos. A Secretaria de Estado não detalhou de que forma o aumento da arrecadação vem sendo revertido em políticas públicas de saúde, saneamento e infraestrutura nas comunidades afetadas.
Ministério Público e direitos das comunidades
O Ministério Público Federal de Minas Gerais (MPF-MG) recomendou, em setembro de 2025, a anulação das autorizações de pesquisa e lavra nos municípios de Araçuaí e Itinga até que sejam cumpridas as exigências da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que obriga a realização de consultas livres, prévias e informadas às comunidades tradicionais.
O documento, assinado pelo procurador Helder Magno da Silva, cita dezenas de comunidades não consultadas, incluindo a Aldeia Cinta Vermelha Jundiba. A ANM informou que analisa o caso e dará manifestação “dentro dos canais legais e administrativos competentes”.
Uma mineração em disputa
Em resposta às críticas, o Ministério de Minas e Energia (MME) anunciou a reestruturação do Conselho Nacional de Política Mineral (CNPM), com o objetivo de planejar o ciclo mineral brasileiro sob a ótica da transição energética e das mudanças climáticas.
“O Brasil precisa de uma mineração sustentável e com responsabilidade social. Não podemos permitir que a corrida pelos minerais críticos repita os erros do passado”, afirmou o ministro Alexandre Silveira ao lançar a nova política em Nova Lima (MG).
Mas, na prática, o equilíbrio entre impacto e benefício segue distante. Um relatório da Oxfam Brasil aponta que, embora 70% das reservas globais de minerais críticos estejam no Sul Global, quase metade dos investimentos em energia limpa se concentra no Norte Global. A diretora-executiva Viviana Santiago resume o paradoxo: “Os países que fornecem os minérios arcam com os danos ambientais, enquanto os mais ricos colhem os benefícios da transição energética.”
No Vale do Jequitinhonha, a poeira sobre as casas e o silêncio dos córregos parecem simbolizar esse desequilíbrio — um retrato das contradições da economia verde quando ela ignora o território e as pessoas que o sustentam.























































