O Brasil deu um passo decisivo na valorização da sua sociobiodiversidade e no reconhecimento de saberes transmitidos por povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares. A recente Resolução nº 47/2025 do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen) inaugura um novo capítulo na relação entre ciência, indústria e populações locais, ao criar um banco de dados de referência sobre Conhecimentos Tradicionais Associados (CTA) e ao estabelecer um mecanismo de consulta voluntária para identificar provedores legítimos desses conhecimentos.
Mais do que uma medida administrativa, trata-se de um avanço regulatório que pode consolidar um ambiente mais justo, transparente e confiável para a inovação científica e tecnológica no Brasil. Ao reconhecer o valor dos saberes tradicionais e garantir mecanismos de repartição de benefícios, o país reafirma seu protagonismo internacional na agenda da bioeconomia e do regime de Acesso e Repartição de Benefícios (ABS).
O que está em jogo
O Brasil é o país com a maior biodiversidade do planeta. Essa riqueza natural é acompanhada por uma impressionante sociobiodiversidade, formada por centenas de povos indígenas, comunidades ribeirinhas, quilombolas, extrativistas e agricultores familiares.
Esses grupos não apenas vivem em íntima relação com seus territórios, mas acumulam, ao longo de gerações, um acervo de saberes sobre plantas medicinais, alimentos, manejo de ecossistemas, rituais e práticas culturais que revelam soluções valiosas para desafios contemporâneos.
Esse conjunto de saberes é conhecido legalmente como Conhecimento Tradicional Associado (CTA) ao patrimônio genético. Em outras palavras, não se trata apenas da biodiversidade em si, mas da forma como populações humanas aprenderam a utilizá-la, domesticá-la e preservá-la.
Da floresta para o laboratório
O potencial do CTA é imenso. A indústria farmacêutica, por exemplo, já reconhece que grande parte de seus compostos ativos têm origem em práticas tradicionais. O mesmo vale para alimentos funcionais, cosméticos naturais e biotecnologia.
Porém, esse potencial muitas vezes foi explorado sem reconhecimento ou compensação justa para as comunidades detentoras desses saberes — um fenômeno conhecido como biopirataria.
Para evitar que isso se repita, a legislação brasileira sobre patrimônio genético e CTA exige que qualquer pesquisa ou exploração comercial que utilize esses saberes tenha um cadastro no SisGen (Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado) e preveja repartição de benefícios.
O desafio das fontes secundárias
Um dos maiores entraves para pesquisadores e empresas sempre foi identificar a origem dos conhecimentos tradicionais quando eles são obtidos em fontes secundárias — como artigos científicos, livros, inventários, filmes ou até mesmo em feiras populares.
A lei brasileira estabelece que, mesmo nesses casos, é preciso buscar o Consentimento Livre, Prévio e Informado (CPI) de pelo menos um provedor legítimo do conhecimento. Mas, na prática, a ausência de registros sistematizados dificultava o processo e gerava insegurança jurídica.
É aí que a Resolução nº 47/2025 traz uma inovação: ao criar um banco de dados de referência, o CGen permitirá que pesquisadores e empresas consultem previamente se determinado conhecimento já possui provedor identificado. Essa consulta é voluntária, mas, ao optar por ela, o usuário terá respaldo oficial em caso de questionamentos futuros. O prazo máximo para resposta é de 60 dias.

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SisGen: inovação brasileira reconhecida
O Brasil já era considerado inovador no campo do ABS por ter criado o SisGen, uma plataforma eletrônica autodeclaratória que simplificou o processo de registro e acompanhamento de projetos que utilizam patrimônio genético e CTA.
Com a nova resolução, o país aprofunda esse modelo, reforçando a rastreambilidade e a segurança jurídica. “A criação do banco de dados vai reduzir inconsistências nos cadastros e dar mais previsibilidade para quem deseja inovar a partir da biodiversidade brasileira, sem abrir mão da justiça com as comunidades que mantêm esses saberes vivos”, explica Luiz Marinello, advogado especialista em direito ambiental e bioeconomia.
A Convenção sobre Diversidade Biológica
Esse avanço também coloca o Brasil em sintonia com os compromissos internacionais assumidos desde a Rio-92, quando foi criada a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB).
A CDB estabeleceu três objetivos centrais:
Conservar a diversidade biológica;
Assegurar o uso sustentável de seus componentes;
Garantir a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados do uso dos recursos genéticos e conhecimentos associados.
O Brasil foi um dos primeiros signatários e, desde então, construiu um marco regulatório robusto. O novo banco de dados de CTA é visto como um passo decisivo para fortalecer a implementação prática desses compromissos.
O peso da biodiversidade brasileira
A relevância do Brasil nessa agenda não é pequena. Segundo dados da Embrapa Territorial, apenas 30% do território nacional é ocupado por agricultura, pastagens e florestas plantadas. O restante corresponde a vegetação nativa preservada, grande parte em áreas habitadas por comunidades tradicionais e povos indígenas.
Esse território funciona como um enorme repositório de saberes ancestrais. Conhecimentos sobre plantas medicinais, por exemplo, já inspiraram pesquisas que resultaram em medicamentos modernos. Outros estudos mostram como práticas de manejo tradicionais ajudam a manter a fertilidade do solo e a diversidade de espécies — lições cada vez mais valiosas diante da crise climática.
A falta de financiamento ainda é barreira
Apesar de todo esse potencial, a bioeconomia baseada em CTA ainda enfrenta uma limitação central: o financiamento insuficiente. Relatório da Climate Policy Initiative (CPI) mostra que apenas 2% dos recursos privados e públicos destinados a financiamento climático no Brasil vão para uso da terra e agricultura regenerativa.
No campo global, a situação também não é muito diferente. Enquanto setores como energia e transporte atraem a maior parte do capital verde, o agro e a bioeconomia ficam em segundo plano, mesmo sendo fundamentais para enfrentar a dupla crise climática e alimentar.
Especialistas defendem que a segurança jurídica trazida pela Resolução nº 47/2025 pode ajudar a destravar investimentos, já que reduz riscos regulatórios e aumenta a confiança de investidores internacionais.
Impactos práticos para comunidades
Para os povos indígenas e comunidades tradicionais, a criação de um banco de dados de referência pode significar maior reconhecimento e acesso a benefícios concretos.
A legislação brasileira prevê que a repartição de benefícios pode se dar de forma monetária (com royalties, por exemplo) ou não monetária (como apoio a projetos comunitários, capacitação ou transferência de tecnologia).
“Mais do que garantir dinheiro, o que está em jogo é assegurar que essas comunidades sejam reconhecidas como coprodutoras de conhecimento e não apenas como fornecedoras de recursos naturais”, explica Juliana Zamboni, advogada especializada em bioeconomia.
O papel da ciência
A Resolução nº 47/2025 também fortalece a colaboração entre ciência e saberes tradicionais. Pesquisadores que antes hesitavam em registrar projetos por medo de cometer equívocos terão agora um instrumento oficial de consulta.
Isso deve ampliar o número de parcerias entre universidades, centros de pesquisa e comunidades locais. Exemplos já existem: na Amazônia, estudos sobre o uso tradicional de plantas medicinais vêm inspirando pesquisas em fitoterapia e novos medicamentos. Em comunidades quilombolas, práticas agrícolas tradicionais têm orientado projetos de agricultura regenerativa.
Brasil como referência internacional
Ao conjugar proteção jurídica, inovação regulatória e valorização cultural, o Brasil se consolida como referência internacional no campo do ABS. Outros países de alta biodiversidade, como Indonésia e Índia, também avançaram em marcos regulatórios, mas a criação de um banco de dados de CTA com consulta oficial é vista como uma inovação brasileira.
Essa liderança é particularmente importante às vésperas da COP30, que acontecerá em novembro em Belém. O evento deve colocar a bioeconomia amazônica no centro das atenções globais, e o novo marco regulatório será uma das vitrines do Brasil.
O desafio daqui em diante
O sucesso da Resolução nº 47/2025 dependerá de sua implementação efetiva. Será preciso garantir que o banco de dados seja alimentado de forma precisa, que as consultas sejam respondidas dentro do prazo e que as comunidades tenham participação ativa em sua gestão.
O risco é que, sem recursos adequados ou sem governança participativa, a resolução vire apenas mais uma boa iniciativa no papel.
No entanto, se bem implementada, pode ser o ponto de virada para transformar a relação entre ciência, indústria e comunidades no Brasil.
“Estamos diante de uma oportunidade histórica de mostrar que a valorização do conhecimento tradicional não é apenas uma questão de justiça cultural, mas também uma estratégia de inovação e competitividade para o país”, resume Marinello.